Envio de spam e ausência de interesse de agir
Data do Julgamento:
05/11/2015
Data da Publicação:
15/11/2015
Tribunal ou Vara: Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul - TJRS
Tipo de recurso/Ação: Apelação Cível
Número do Processo (Original/CNJ): 0127063-76.2015.8.21.7000
Nome do relator ou Juiz (caso sentença): Des. Marcelo Cezar Müller
Câmara/Turma: 10ª Câmara Cível
Artigos do MCI mencionados:
Artigo 2º, I a VI.
Ementa:
"RESPONSABILIDADE CIVIL. ENVIO DE E-MAIL. SPAM. PUBLICIDADE. PROPAGANDA. ATO ILÍCITO. DANO MORAL. INTERESSE JURÍDICO. O interesse jurídico possui relação com a necessidade de ser ajuizada ação para solucionar um litígio. No caso, a situação, relacionada ao recebimento de e-mail ou mensagem de publicidade, pode ser solucionada por outros meios. Apelação não provida."
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Apesar de a decisão judicial reconhecer que o envio e recebimento de spams não é passível de responsabilização civil, existe certa controvérsia doutrinária a respeito do tema, até mesmo porque o Marco Civil da Internet nada especificou a respeito do spam. Na hipótese concreta em análise, a decisão judicial optou por não imputar responsabilidade ao usuário acusado de ser spammer, aduzindo que o processo não preenchia os requisitos de necessidade e utilidade.
Spam, nada mais é do que a mensagem eletrônica indesejada que, normalmente, têm conteúdo comercial e visa divulgar produtos ou serviços em massa, a múltiplos destinatários, na esperança de que pelo menos alguns deles se interessem pelo que foi divulgado.
Como dito, o Marco Civil não regulamentou a matéria, mas estabeleceu alguns princípios gerais de proteção de estabilidade, segurança, funcionalidade da rede e privacidade do usuário e, de outro lado, princípios que garantem a livre iniciativa, livre concorrência, neutralidade da rede e a liberdade dos modelos de negócio (artigos 2º e 3º da Lei 12.965/14).
Sopesados estes princípios, a decisão judicial em análise optou pela prevalência, no caso concreto, da livre iniciativa, seguindo posicionamento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça, que, em 2009, ponderou que o spam, por si só, não consubstancia fundamento para justificar o dano moral, notadamente em função da possibilidade que o usuário tem de bloquear, apagar ou simplesmente recusar tais mensagens (REsp. 844736- DF, Min. Relator Honildo Amaral de Mello Castro, d.j. 27/10/2009).
Muito se fala, hoje em dia, em regulamentação do Marco Civil da Internet, excepcionando o princípio de neutralidade da rede, para permitir aos provedores interferir no tráfego de rede, bloqueando spams e dando prioridade a outros tipos de conteúdo ou aplicação. Embora tal excepcionalidade seja quase uma unanimidade, a regulamentação pretendida não trata, por óbvio, de responsabilidade civil.
Flávio Tartuce, por exemplo, adota posição diametralmente oposta ao que foi consignado pela decisão judicial em análise, afirmando que o spam configura flagrante abuso de direito, assemelhado ao ato ilícito pelas eventuais consequências, contraria o fim social e econômico da grande rede, o que já serviria para enquadrar a prática como abuso de direito, como conduta atentatória à boa-fé objetiva. (TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. São Paulo: Método, 2011, p. 449-450.)
Tarcísio Teixeira, por seu turno, vai além, aplicando responsabilidade civil objetiva até mesmo para o provedor de e-mails, atribuindo-lhe o dever de indenizar o consumidor lesado pelo recebimento do spam. Para esse autor, se é o provedor quem faz a mensagem indesejada chegar ao usuário, nos termos do artigo 3º, caput do Código de Defesa do Consumidor, ele passa a ser fornecedor, por tal razão, cabe a ele também a responsabilidade pela reparação do dano causado (TEIXEIRA, Tarcísio. Curso de Direito e Processo Eletrônico. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 204).
Neste particular, peço vênia para discordar do ilustre autor, pois não há qualquer nexo de causalidade entre a atividade do provedor de correio eletrônico e o dano causado pelo spammer. O provedor em nada concorreu para a prática do ato reputado como ilícito. Vale dizer, se o comportamento do usuário foi o único elemento causador do dano, não há como responsabilizar o fornecedor de serviços, por absoluta ausência de nexo de causalidade entre sua atividade e o dano.
Como bem assinala Erica Brandino Barbagalo, “em regra não se pode responsabilizar o provedor de serviços de e-mail pelo recebimento dos malfadados spams, ou mensagens indesejadas, uma vez que não exerce esse provedor atividades de triagem. Seria o equivalente a responsabilizar os correios por cartas indesejadas. Em caso de dano provocado por spam, responde o causador do dano, ou seja, o remetente dessas mensagens.” (BARBAGALO, Erica Brandino. Aspectos da responsabilidade civil dos provedores de serviço de internet, in Conflitos sobre nomes de domínio e outras questões jurídicas da internet. LEMOS, Ronaldo, WAISBERG, Ivo (Coord), São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 352 e 353)
A situação é diferente, por outro lado, na hipótese de o provedor ser condescendente com os e-mails não solicitados, deixando de bloquear os spams de uma conta de e-mail que insiste em fazê-lo, após o recebimento de uma ordem judicial, nos termos do que estabelece artigo 19 do Marco Civil da Internet. Nesta conjuntura, o provedor de e-mail poderá responder pelo dano causado, em função de sua negligência e omissão no atendimento da ordem judicial que determinou o bloqueio dos spams provenientes de uma determinada caixa postal virtual.
Resumindo, no que se refere ao Provedor de Correio Eletrônico, a meu ver, ele não responde pelos danos causados por spams enviados por seus usuários, justamente porque não interfere no envio e recebimento de tais mensagens. A responsabilidade civil pelo spam, em tese, somente pode ser imputada ao usuário (spammer) que o disseminou, desde que comprovado o dano, a conduta e o nexo de causalidade.
Ao analisar o acordão, teço meus comentários para discordar da decisão proferida pelo TJRS, eis que equivocada no sentido técnico e jurídico, e portanto, o processo jamais poderia ter sido extinto por falta de interesse jurídico, uma vez que há sim bem a ser tutelado, qual seja, o direito de ser não receber mensagens indesejadas e exclusão de seus dados, afrontando expressamente os incisos II, IV do artigo 3º, inciso I, V, VII, VIII, IX, X, XI do artigo 7º, artigo 8º caput, artigo 11 caput, ambos da Lei 12.965/2014, o chamado Marco Civil da internet.
O spam é algo irritante, e sua caracterização como algo que realmente incomoda as pessoas foi apresentado pela primeira vez em 1970, em um programa humorístico do grupo inglês Monty Python, onde essa palavra era usada para designar algo repetitivo, e ao fundo, diversos vikings cantavam muito alto uma música de amor ao spam (que também é um alimento enlatado parecido com um apresuntado), que se torna irritante ao ponto de todos perderem a paciência com a cantoria.
Uma simples mensagem de texto com caracteres e poucas cores tem, em média, um tamanho aproximado de 318 kilobytes, e algumas mais elaboradas, com fotos e cores, podem chegar a quase 1 megabyte. Pode parecer pouco se analisarmos o fato de forma isolada, mas se pensarmos que todos os dias recebemos em média mais de 30 mensagens consideradas spam, teríamos no final do mês uma média de 900 mensagens indesejadas (número médio de mensagens que foram recebidos em minhas caixas postais em 2017, até o momento), representando aproximadamente 287 megabytes de dados do pacote contratado com as operadoras consumido exclusivamente para receber lixo, causando prejuízo que deve ser ressarcido.
O acórdão peca na medida em que a privacidade do autor/usuário foi desrespeitada com o recebimento dessas mensagens, e porque teve também desrespeitado o seu direito de ser informado sobre eventuais coletas de dados, seu uso e cessão a terceiros como a ré, bem como porque requereu à demandada que fossem apagados seus dados mas seu pleito não foi atendido, assim, mesmo que haja um suposto direito das empresas em realizarem a publicidade e propaganda de produtos e serviços, ao não respeitarem a solicitação, abusam do seu direito e desrespeitam, em tese, o artigo 187 do Código Civil, causando dano material e eventualmente um prejuízo moral a serem ressarcidos. Mas com certeza o prejuízo material existe e consiste na redução de velocidade da banda contratada e também pelo consumo do eventual pacote de dados.
O dano moral é questionável e só pode ser deferido caso haja uma situação em que o usuário seja exposto a situações realmente vexatórias como, por exemplo, recebimento de material pornográfico, sexual ou de mensagens em número exagerado que lhe trouxesse prejuízo ao trabalho ou lazer, não podendo ser deferido somente pelo recebimento dessas mensagens.
A simples afirmação do acordão de que se trata de “situação costumeira, que acontece milhões de vezes a cada dia, em relação aos usuários”, não implica na legalidade do fato, ao contrário, pois é em razão da inexistência de coibição dessas práticas pelo Poder Judiciário que atos como esse se perpetuam como se fossem normais e não ofendessem direitos alheios, prejudicando uma infinidade de usuários em todo mundo, e em total desrespeito aos princípios basilares da internet, esculpidos pelo aludido Marco Civil da internet.
Atualmente, é sabido e notório que, na verdade, as opções usadas no Brasil (sejam elas as opções de responder negativamente, selecionar a opção “descadastrar” etc), ao invés de servirem ao propósito de excluírem o endereço eletrônico, apenas confirmam que ele é válido, assim, novamente seu cadastro pode ser vendido como sendo um endereço de e-mail válido e ativo, desrespeitando mais uma vez os incisos VII, VIII, IX e X do artigo 7 já citado, e só com intervenção do Poder Judiciário é que se pode (ou se poderia) ter a certeza de que haveria comando judicial nesse sentido.
Segundo dados do CERT.br - Centro de Estudos, Resposta e Tratamento de Incidentes de Segurança no Brasil, em 2015, ano em que a ação foi proposta, forma reportados 711.467 abusos relacionados ao envio de spam no Brasil. Todavia, esse número é extremamente superior ao reportado porque a absurda maioria dos casos não são relatados simplesmente por falta de conhecimento dos usuários sobre essa possibilidade e porque, na maioria dos casos, nada ocorre na prática.
Hodiernamente, não há no Brasil uma legislação especifica sobre o tema, estando em trâmite o Projeto de Lei 2.186/2003, que efetivamente cria o ilícito penal pelo envio dessas mensagens, bem como multa que será acrescida de 1/3 na reincidência, além de todas as regras a serem seguidas no envio das mensagens comerciais não solicitadas, mas as regras já citadas alhures têm aplicação ao caso.
A abusividade da publicidade gerada pelo envio de e-mails indesejados fica flagrante na medida em que o autor não tinha a possibilidade real e efetiva de requerer sua exclusão dessa lista, eis que todas as suas tentativas foram em vão, comprovando que só o Poder Judiciário poderia solucionar o caso e determinar essa exclusão definitiva. E mesmo que houvesse a possibilidade apagar a mensagem ou configurar seu e-mail para rejeita-las, elas são primeiramente baixadas dos servidores, e por isso, como dito, há consumo de banda e interferência na velocidade, que são danos materiais porque o usuário paga por sua utilização, portanto, por todos os ângulos que se analise o caso, há sim dano material e um (ou vários) interesse jurídico de um bem a ser tutelado pelo Estado, logo, o processo jamais poderia ter sido extinto sem julgamento do mérito.
Nas lições de Antônio Herman de Vasconcelos e Benjamim, ao comentar sobre o conceito de publicidade do Código de Defesa do Consumidor, na obra homônima (Forense, 2005, 8ª. ed, p. 346) comentada pelos autores do anteprojeto, a tese de que as mensagens não solicitadas são abusos fica corroborada:
De bom alvitre citar Amaro Moraes e Silva Neto, um dos pioneiros em nossa sociedade jurídica no estudo do tema, em um dos seus escritos intitulado "Spam: Abuso de direito ou ilícito civil?" (publicado na obra coordenada por Omar Kaminski, Internet Legal – O direito da tecnologia da informação, Juruá, 2006, 1ª. ed, 4ª. tiragem, p. 190):
Dessa forma, o acordão violou Lei Federal, expressando que ainda haveria necessidade de sua regulamentação, não primando pela proteção aos usuários, “legalizando” prática abusiva e ferindo os direitos dos usuários de saberem o que é feito com seus dados e de tê-los apagados definitivamente.