Dever de disponibilizar meios para identificação

Data do Julgamento:
30/04/2015

Data da Publicação:
07/05/2015

Tribunal ou Vara: Superior Tribunal de Justiça - STJ

Tipo de recurso/Ação: Agravo em Recurso Especial

Número do Processo (Original/CNJ): 0049170-15.2013.8.07.0001

Nome do relator ou Juiz (caso sentença): Min. Antonio Carlos Ferreira

Câmara/Turma: Monocrática (4ª Turma)

Ementa:

"Trata-se de agravo nos próprios autos (CPC, art. 544) contra decisão que inadmitiu o recurso especial em virtude da incidência da Súmula n. 7/STJ (e-STJ fls. 230/232).

O acórdão recorrido está assim ementado (e-STJ fls. 158/159):

"APELAÇÃO CÍVEL. RECURSO ADESIVO. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. DISPONIBILIZAÇÃO DE MEIOS PARA IDENTIFICAÇÃO DE CADA USUÁRIO. DEVER. REGISTRO DO NÚMERO DE IP. (INTERNET PROTOCOL) SUFICIÊNCIA. SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA. INEXISTÊNCIA. ATRIBUIÇÃO INTEGRAL DOS ÔNUS DA SUCUMBÊNCIA AO RÉU. SENTENÇA REFORMADA.
1. Ao oferecer um serviço por meio do qual se possibilita que os usuários externem livremente sua opinião, deve o provedor de conteúdo ter o cuidado de propiciar meios para que se possa identificar cada um desses usuários, coibindo o anonimato e atribuindo a cada manifestação uma autoria certa e determinada. Sob a ótica da diligência média que se espera do provedor, deve este adotar as
providências que, conforme as circunstâncias específicas de cada caso, estiverem ao seu alcance para a individualização dos usuários do site, sob pena de responsabilização subjetiva por culpa in omittendo .
2. Ainda que não exija os dados pessoais dos seus usuários, o provedor de conteúdo que registra o número de protocolo (IP) na Internet dos computadores utilizados para o cadastramento de cada conta mantém um meio razoavelmente eficiente de rastreamento dos seus usuários, medida de segurança que corresponde à diligência média esperada dessa modalidade de provedor de serviço
de internet.
3. O URL (Uniform Resource Locator ) funciona como identificador único e exclusivo de uma página na internet, entretanto, como já decidido pelo c. STJ em outras oportunidades, não é crível que este seja o único meio capaz de identificar o IP (Internet Protocol ) de um usuário.
4. Se um dos dois pedidos formulados pelo autor não foi conhecido, em decorrência da perda superveniente do objeto, e se o outro pleito foi acolhido, há que se reconhecer a sucumbência integral do réu.
5. Apelação conhecida e desprovida. Recurso adesivo conhecido e provido. Unânime.

(...)

Desse modo, para rever os fundamentos do acórdão recorrido e concluir, como pretende a recorrente, que a apresentação dos dados do usuário responsável pelo perfil indicado configura obrigação impossível de ser cumprida, seria imprescindível o reexame do conjunto fático-probatório dos autos, o que não se admite no âmbito do recurso especial em razão do teor da Súmula n. 7/STJ: "A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial." (...)"

  • Marcel Leonardi
    Marcel Leonardi em 05/08/2015

    Esta decisão chama particular atenção pela crítica proferida pelo TJ-DF ao texto do artigo 19 da Lei 12.965/14 e do processo legislativo que culminou em sua aprovação. Confira-se:
     

    "(...) todo o lobby político empreendido sobre o texto do Marco Civil da Internet, no sentido de mitigar a responsabilidade do provedor, não guarda identidade e conformidade com os princípios constitucionais, garantistas e consumeristas de nosso ordenamento jurídico."


    É particularmente lamentável que representantes do Poder Judiciário tenham uma visão tão equivocada do processo legislativo que culminou na aprovação do Marco Civil da Internet, tendo em vista que ele é considerado um exemplo internacional de democracia participativa. Praticamente nenhum outro projeto de lei contou com tanto engajamento da sociedade civil ao longo de sua tramitação, da concepção à aprovação da lei.

    Como destaca Nicholas W. Allard (Lobbying Is an Honorable Profession: The Right to Petition and the Competition to Be Right, in Stanford Law and Policy Review, Volume 19, issue 1), talvez o mecanismo mais efetivo de autocorreção no processo político seja a intensa competição em estar certo. Nenhum grupo de interesses detém o monopólio de acesso a legisladores ou de informações. Parlamentares e suas equipes não se baseiam em uma única fonte de informação ao tomar decisões sobre políticas públicas: ouvem especialistas, acadêmicos, acompanham a imprensa geral e especializada, fazem suas próprias pesquisas, utilizam os serviços de consultoria legislativa e realizam audiências públicas, entre outros métodos, para conhecer as diversas posições e chegar a uma conclusão sobre determinado assunto.

    Isso pode ser claramente observado no processo de elaboração, discussão e aprovação do Marco Civil da Internet: além de duas consultas públicas realizadas por meio do portal Cultura Digital (arquivadas em http://culturadigital.br/marcocivil/), uma vez iniciada a tramitação do então PL 2126/2011 na Câmara dos Deputados, nada menos do que sete audiências públicas foram realizadas em lugares diversos do país, das quais participaram 62 palestrantes de dezenas de instituições, com o objetivo de receber contribuições da sociedade civil organizada. Foram também recebidas contribuições de dezenas de entidades, com intensa participação dos mais diversos interessados por meio da Internet. Os detalhes estão publicamente disponíveis no relatório final aprovado pela Câmara dos Deputados, com destaque para as páginas 9 a 22 do documento.

    Ainda que grupos de interesse tenham a oportunidade de influenciar decisões ao informar legisladores sobre os pontos de vista que defendem, eles não são única, nem a principal fonte de informações do Congresso. Além disso, não há qualquer garantia de que suas posições prevalecerão. Como diz Hubert Humphrey, “o direito de ser ouvido não inclui automaticamente o direito de ser levado a sério”. Por fim, outra garantia inerente ao processo democrático é que nenhuma decisão é final: o que foi feito pode ser desfeito ou modificado.

    O exemplo do artigo 19 do Marco Civil da Internet é particularmente interessante: a proposta inicial, ainda em fase de anteprojeto de lei e documentada publicamente no portal Cultura Digital, era no sentido de se estabelecer um sistema de notificação e retirada de qualquer conteúdo online, mediante simples notificação do interessado - praticamente o modelo oposto ao que foi adotado pela lei. Somente após múltiplos debates e defesa de posicionamentos divergentes é que houve uma clara opção legislativa pela preservação da liberdade de expressão online como regra geral, estabelecendo-se que plataformas e serviços online não são responsáveis pelo conteúdo gerado por usuários, salvo descumprimento de ordem judicial de remoção desse conteúdo, e ressalvadas as disposições legais em sentido contrário.

    Essa opção legislativa não é aleatória, nem derivou de um único grupo de interesse: ao contrário, foi amplamente debatida por acadêmicos, ativistas, empresas, organizações não-governamentais, profissionais de comunicação e diversos outros stakeholders. E a lei não excluiu outras possibilidades jurídicas, pois afirmou que essa é a regra geral, ressalvando disposições legais específicas em sentido contrário.

    É verdade que o artigo 19 do Marco CIvil da Internet altera a jurisprudência até então dominante do Superior Tribunal de Justiça, pela qual a simples notificação já impunha aos serviços online o dever de remover conteúdo apontado como infringente, sob pena de responsabilização. E é perfeitamente normal que isso ocorra: se as leis servissem apenas para confirmar o que já pensam os tribunais, teriam pouca utilidade como instrumento de transformação social e de progresso de uma nação.

    Em suma, o artigo 19 do Marco Civil da Internet é resultado de um amplo processo democrático, representa uma das principais conquistas dos usuários de serviços online e é totalmente compatível com os princípios constitucionais, garantistas e consumeristas de nosso ordenamento jurídico.