Inconstitucionalidade de dispositivo suscitada

Data do Julgamento:
17/05/2016

Data da Publicação:
22/11/2016

Tribunal ou Vara: Supremo Tribunal Federal - STF

Tipo de recurso/Ação: Ação Direta de Inconstitucionalidade

Número do Processo (Original/CNJ): 4000753-38.2016.1.00.0000

Nome do relator ou Juiz (caso sentença): Min. Rosa Weber

Câmara/Turma: -

Artigos do MCI mencionados:

Artigo 10, § 2º e artigo 12, III e IV

Ementa:

"Vistos etc.

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, com pedido de medida cautelar, proposta pelo Partido da República - PR contra os arts. 10, § 2º, e 12, III e IV, da Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet), diploma que estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil.

O autor aponta que os dispositivos impugnados têm sido invocados para justificar decisões judiciais determinando “a suspensão das atividades dos serviços de troca de mensagens pela internet, sob o fundamento de que a empresa responsável pelo aplicativo se nega a disponibilizar à autoridade judiciária o conteúdo de mensagens privadas trocadas por usuários submetidos a investigação criminal”.

Sustenta que o art. 10, § 2º, da Lei nº 12.965/2014, para se compatibilizar com o art. 5º, XII, da Lei Maior, deve ser interpretado de modo a somente autorizar a disponibilização do conteúdo de comunicações privadas, por ordem judicial, no âmbito de persecução criminal.

Defende a inconstitucionalidade material do art. 12, III e IV, da Lei nº 12.965/2014, no que prevê as penalidades de “suspensão temporária e de proibição de exercício das atividades, decorrente de descumprimento de ordem judicial por parte da empresa responsável por fornecer mecanismo de troca de mensagens via internet”, em face dos arts. 1º, IV, 5º, IX, XXXII, XLV e XLVI, 170, caput e V, e 241 da Constituição da República, em que albergadas, em especial, as liberdades de expressão, de comunicação, de iniciativa, de concorrência e de consumo e os princípios da intranscendência e da individualização da pena, da continuidade dos serviços públicos e da proporcionalidade. (...)"

  • Francisco Brito Cruz
    Francisco Brito Cruz em 27/11/2016

    O tratamento jurídico a bloqueios de aplicativos (mais especificamente do mensageiro instantâneo WhatsApp) chegou ao Supremo Tribunal Federal por duas ações recentes, a ADPF 403 e a ADI 5527. A ADPF 403, proposta pelo Partido Popular Socialista (PPS), questiona o bloqueio do WhatsApp como uma medida violadora de preceito fundamental. Seu cerne é o debate sobre a proporcionalidade de determinações de bloqueio tomadas recentemente por magistrados e de sua compatibilidade com o texto constitucional (mais especificamente o inciso IX, artigo 5º da CF, que protege a liberdade de comunicação). Tais determinações podem diferentes embasamentos jurídicos, como o poder geral de cautela (consignado nos artigos 139, IV e 536, § 3º do novo Código de Processo Civil) ou a possibilidade de impor obrigações a terceiros (conforme artigo 380 do mesmo diploma). Na ADPF o que está em jogo são bloqueios de aplicativos de mensagens instantâneas de uma forma geral, e não a inconstitucionalidade de um ou outro dispositivo legal.

    Entretanto, na ADI 5527, proposta pelo Partido da República (PR), o alvo do debate é sim específico. Estão em jogo os artigos 10, § 2º e 12, incisos III e IV do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014). O despacho da Ministra Rosa Weber em comento relata tal pedido do PR: seriam inconstitucionais as medidas de suspensão temporária (inciso III) e de proibição do exercício de atividades (IV) de “coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais ou de comunicações por provedores de conexão e de aplicações de internet” caso fossem desrespeitados “a legislação brasileira e os direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e dos registros” nas situações que “em que pelo menos um desses atos ocorra em território nacional” (excertos do caput do artigo 11 os quais o artigo 12 remete). O partido argumenta que tais sanções feririam uma série de dispositivos constitucionais: os arts. 1º, IV, 5º, IX, XXXII, XLV e XLVI, 170, caput e V, e 241. Possibilitar o bloqueio de aplicações (temporária ou definitivamente) seria uma mutilação da CF.

    Com o artigo 10, § 2º, o pedido é mais sutil. O PR pede que seja dado a ele uma interpretação conforme à Constituição que equipare a disponibilização judicial do “conteúdo das comunicações privadas” à regra destinada a quebra de comunicações telefônicas prevista no inciso XII do artigo 5º da CF. Em suma, quer que o acesso ao conteúdo de conversas realizadas através de serviços de trocas de mensagens pela Internet tenha nível de proteção equiparado ao dado ao sigilo telefônico – só seria possível acessar tais conteúdos “por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”.

    Como foi relatado na plataforma bloqueios.info, desenvolvida pelo InternetLab, “a ADI 5527 já recebeu manifestações da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e da Advocacia-Geral da União”. Nenhuma dessas endossou o pedido da ADI. As peças trouxeram à consideração da Corte importantes debates jurídicos já travados nos jornais e nas colunas que valem a pena serem explorados.

    Sobre a interpretação dos incisos III e IV do artigo 12 a AGU e o Senado Federal vão no sentido já defendido por alguns juristas, como Carlos Affonso Pereira de Souza e Ronaldo Lemos (que inclusive assinam amicus curiae protocolado no processo pelo instituto por eles dirigido), e instituições, como o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br). Não haveria inconstitucionalidade, mas uma “incompreensão” por parte do Judiciário. Defendem que as sanções do artigo 12 devem somente serem aplicada em casos de violações à normas de proteção de registros, dados pessoais e comunicações privadas, e não quando há ofensa a outro dispositivo da legislação brasileira. Ainda, argumentam que a interpretação também é inadequada por conta de discordarem que as medidas contidas no artigo 12, III e IV, ensejam, necessariamente, o bloqueio integral de aplicações. Apenas atividades “coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais ou de comunicações por provedores de conexão e de aplicações de internet” que fossem consideradas ilegais poderiam ser alvo de suspensão ou proibição.

    A literalidade dos artigos 11 e 12, contudo, não apontam inequivocamente para tal “incompreensão” que o Judiciário estaria realizando para determinar bloqueios. Duas críticas podem ser levantadas.

    Em primeiro lugar, a ideia de matiz “originalista” (pois visa estabelecer como critério de aplicação uma ideia abstrata – e disputável – do que o legislador “quis dizer”) de que tais sanções somente são aplicáveis em caso de lesão à privacidade e proteção de dados precisa ser melhor detalhada. O artigo 11 regra que devem ser respeitados “a legislação brasileira e os direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e dos registros”, mas isso quereria dizer que somente no caso de desrespeito destes dois itens que as sanções seriam aplicáveis? A falta de um marco legal que estabeleça o que é a proteção de dados pessoais agrava esse impasse: tal lacuna evidencia que dizer que ambos itens devem ser “preenchidos” é uma construção doutrinária póstuma, não a “intenção” do legislador. Um resgate histórico do debate parlamentar apontaria que a inserção deste artigo também estaria ligada a uma reação às revelações feitas pelo ex-agente da Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos, Edward Snowden; reação em termos de proteção à privacidade, mas, principalmente, de proteção à primazia da jurisdição brasileira de tutela à privacidade. É uma construção como essa que pode se obter na fusão dos itens “legislação brasileira” e “direitos à privacidade...”. Ainda, porque a menção específica à legislação brasileira se “os direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e dos registros” já estariam, pelo menos em alguns pontos, consignados em nossa ordem constitucional.

    Em segundo lugar, o argumento de que as medidas contidas no artigo 12, III e IV, não ensejariam, em nenhuma hipótese, o bloqueio integral de aplicações por se destinarem apenas atividades “coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais ou de comunicações por provedores de conexão e de aplicações de internet” é ainda mais discutível. Como suspender as atividades de “coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais ou de comunicações (grifo nosso)” de aplicação como o WhatsApp sem suspender o serviço como um todo? É difícil imaginar como a aplicação de tal medida (de suspensão de todas essas atividades) poderia ser alcançada sem o bloqueio do app. Há quem possa aventar que existem exemplos de suspensão de apenas parte de tais atividades (uma espécie de modulação de efeitos da sanção, como no recente caso em que a Alemanha proibiu o compartilhamento de dados entre WhatsApp e Facebook em resposta à mudança nas políticas de privacidade do app), mas ainda resta a possibilidade facultada ao juízo de aplicar a sanção integralmente.

    A discussão sobre a interpretação do artigo 10, § 2º, por fim, é urgente. Ela aponta para um descompasso entre o entendimento jurisprudencial sobre quais devem ser os níveis de proteção de dados armazenados e de comunicações telefônicas. Com base em um texto de autoria do prof. Tercio Sampaio Ferraz Jr., de 1992, a interpretação do Supremo aponta para uma proteção menor a dados armazenados em relação aos critérios necessários para a autorização de interceptações telefônicas. Será que a repercussão de tal construção doutrinária tem paralelo no imaginário social? O que entendemos como mais gravoso à intimidade e à vida privada: o acesso a todo o conteúdo de conversas no celular ou a interceptação do fluxo de comunicação telefônica.

    Bloqueios de aplicativos tem sido medidas com impactos gigantescos nos direitos dos cidadãos brasileiros. Não se trata aqui de defende-los como adequados apenas em razão de apontar nuances no entendimento do que diz o Marco Civil da Internet. A equação é difícil, mas um bom precedente é aquele que considera tais nuances e verifica como que eles aparecerão em casos futuros.