Representação criminal e bloqueio de aplicativo

Data do Julgamento:
19/07/2016

Data da Publicação:
19/07/2016

Tribunal ou Vara: 2ª Vara Criminal - Duque de Caxias - RJ

Tipo de recurso/Ação: Representação criminal

Número do Processo (Original/CNJ): 062-00164/2016

Nome do relator ou Juiz (caso sentença): Juíza Daniela Barbosa Assumpção de Souza

Câmara/Turma: -

Artigos do MCI mencionados:

Artigo 7º, III; artigo 10, § 1º; artigo 11, § 1º, § 2º e § 3º

Ementa:

"Trata-se de representação da d. autoridade policial da 62ª DP, ratificada pelo Ministério Público, dando conta de que a determinação deste Juízo para a interceptação telemática das mensagens compartilhadas no aplicativo Whatsapp, pertencente ao Facebook Serviços Online do Brasil, não foi cumprida, requerendo, assim, as medidas legais cabíveis para o efetivo cumprimento da ordem.

Tendo em vista que se trata de procedimento sigiloso, tendo em vista, ainda, que as decisões proferidas recentemente referentes ao aplicativo Whatsapp causaram certa indignação da sociedade, a fim de garantir a todos que serão afetados por este decisum o direito à informação, passo a decidir a questão, analisando em separado os demais pedidos, a fim de que somente a presente possa ser de conhecimento público, permanecendo íntegro o sigilo da presente investigação. (...)"

  • Fabricio da Mota Alves
    Fabricio da Mota Alves em 27/07/2016

    O episódio recente de suspensão do Whatsapp trouxe à tona, pela quarta vez, desde que o Marco Civil da Internet foi editado, um debate que vai muito além do cabimento ou não de bloqueios a aplicações da internet pelo Poder Judiciário.

    No cerne da discussão, há um imbróglio de múltiplos contornos, que demanda uma análise sob diferentes olhares, para que, enfim, seja possível conferir densidade mínima de argumentação útil.

    Logo de plano, a problemática em torno da fundamentação dessas decisões judiciais, que invocaram – pelo que foi constatado até o presente momento – os artigos 10 e 12 da lei regente como apanágios da interdição judicial à atividade empresarial, é, na verdade, de solução franciscana, de tão flagrante o equívoco hermenêutico.

    A exegese dissonante acerca da aplicação do art. 12, inc. III, do Marco regulatório, beira o desplante. Não é preciso muito esforço para, em uma leitura atenta, observar que referido dispositivo apenas apresenta uma das possíveis penalidades administrativas à empresa de internet que vier a descumprir as determinações legais sobre proteção de registros, de dados pessoais e de comunicações privadas.

    Em outras palavras, aquele que violar o dever legal de proteção dos dados do usuário poderá sofrer, como punição, a “suspensão temporária das atividades” (art. 12, inc. III) de “coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais ou de comunicações por provedores de conexão e de aplicações de internet” (art. 11).

    Ora, tal atribuição nada mais é do que uma das manifestações do poder de polícia que a Administração Pública deve ter sempre que lhe couber a função fiscalizadora de assuntos caros à sociedade. Na verdade, as medidas previstas no art. 12 não diferem de outras tutelas administrativas existentes no ordenamento legal nacional, vis-à-vis o disposto na Lei Geral das Telecomunicações (art. 173) – que ampara as medidas repressivas da Anatel – ou no Decreto nº 2.181/97 (art. 18) – no caso daquelas passíveis de serem aplicadas em garantia das relações de consumo pelos Procons e pela Secretaria Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça.

    De toda sorte, não é suficiente, aqui, adotar a visão monocular, como advertido acima.

    É necessário ainda superar essa questão. Operadores do Direito do porte de Aury Lopes Junior, Alexandre Infante e Vladimir Aras já se posicionaram publicamente no sentido de que pouco importa a fundamentação baseada no Marco regulatório, pois, ainda que a norma venha a sofrer mudanças por força de eventual procedência das ações de constitucionalidade em trâmite no Supremo Tribunal Federal, mesmo assim, haverá espaço jurídico e doutrinário para novos bloqueios judiciais, face ao poder geral de cautela de que dispõe o magistrado.

    A discussão, portanto, necessita transcender o fetichismo digital, para que se permita avaliar o desafio dialético: a discussão em torno da legalidade e da constitucionalidade de medidas cautelares penais que ousem impor consequências gravosas a terceiros estranhos à investigação criminal, em resposta a suposto descumprimento de determinação judicial.

    Dito de outra maneira: quais são os limites da tutela cautelar penal?

    Nem se diga possível sustentar cabível a medida cautelar penal prevista no art. 319, inc. VI, do CPP, que autoriza a suspensão do exercício de atividade de natureza econômica “quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais”, posto que se trata, no caso, de entendimento equivocado. Isso porque está-se falando de tutela cautelar de natureza pessoal, ou seja, sujeita à observância dos requisitos elencados no art. 282, do CPP, onde não há espaço para se afetar direitos de terceiros estranhos à investigação criminal.

    Ademais, o abuso do poder cautelar foi de tal forma evidente, que, inovando o objeto do mandado judicial, a magistrada de Duque de Caxias não se limitou a determinar ao Facebook a interceptação telemática – sabedora de que tal providência não bastaria para a efetividade da investigação criminal.

    O juízo foi além: exigiu “a desabilitação da chave de criptografia”. Alegou, inclusive, não ser possível a prestação de serviços de comunicação digital no mercado brasileiro que impeçam a efetividade da Justiça criminal.

    Extrapolou – e muito – os limites da jurisdição, adentrando à seara da regulação da atividade econômica, a despeito de inexistir lei que ampare tal entendimento. Usurpou, assim, função típica do legislador, eis que fixou condições não previstas em lei para a o exercício da atividade comercial. Justamente por isso, impõe-se abordar a questão também sob o enfoque das liberdades individuais, entre as quais o livre exercício de atividades econômicas sem embaraços, além daqueles já previstos previamente pelo legislador.

    Ora, se a empresa desenvolve um software que lhe permita exercer determinada atividade comercial através da internet, tendo, para isso, observadas as cominações legais existentes, capazes de assegurar que o serviço por ela prestado tem objeto lícito e compatível com as regulações legais incidentes no campo de sua atuação econômica, não há porque se punir, pela via judicial, o particular que, tendo agido dentro dos limites da lei, presta legitimamente serviços ao mercado consumidor nacional.

    Portanto, a conjugação dessas análises, quando feita associadamente, não pode conduzir a outra conclusão senão a de que essas medidas cautelares que vêm sendo aplicadas no âmbito da Justiça criminal são flagrantemente inconstitucionais e ilegais, ainda que, sopesados os princípios maiores da Lei Maior, esse entendimento não contribua para a efetividade da persecução penal e acabe por fomentar o discurso da impunidade.

    A bem da verdade, o debate aqui proposto não deve se limitar à visão binária do “interesse público versus interesse privado”.

    Trata-se de uma discussão mais densa, que envolve o papel do Estado constitucional, a ponderação de direitos fundamentais, garantias individuais, interesse coletivo e da plenitude do exercício dos atos da vida em sociedade, para se chegar a uma definição sobre a fronteira jurídica da atuação do Poder Judiciário na busca permanente (e legítima) da efetividade de suas decisões, mas sem desprezar princípios como o da segurança jurídica e o da legalidade – este, corolário obrigatório do pensamento político-democrático.

  • Veridiana Alimonti
    Veridiana Alimonti em 26/07/2016

    Em 19 de julho de 2016, o aplicativo Whatsapp foi bloqueado pela quarta vez no Brasil, em cumprimento à decisão aqui comentada. No mesmo dia, tal bloqueio foi suspenso após deferimento de liminar pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Ricardo Lewandowski, em decisão também disponível neste Observatório. A cada novo bloqueio, diferentes questões são suscitadas: se o Marco Civil da Internet realmente confere a base legal a esse tipo de medida, se é admissível que o Whatsapp alegue não ter sede no Brasil ao não cumprir a determinação judicial, os impactos dos bloqueios à neutralidade e à confiabilidade da rede, bem como a proporcionalidade da medida diante da quantidade de usuários do aplicativo e de direitos fundamentais como a liberdade de expressão e o acesso à informação.

    Para além de todas essas questões (parte delas já bem analisadas aqui por autor também comentador deste site), outra vem chamando a atenção – o questionamento do uso de criptografia ponta-a-ponta em aplicações que servem à comunicação interpessoal. Em sua decisão, a Juíza requereu ao Facebook Serviços Online do Brasil, companhia com sede no país pertencente ao mesmo grupo empresarial que o aplicativo Whatsapp, “a desabilitação da chave de criptografia”, de modo que as mensagens trocadas fossem “desviadas em tempo real (...), antes de implementada a criptografia”. Diante da resposta da empresa de que tal solução não poderia, tecnicamente, ser adotada e que, portanto, não seria possível cumprir a ordem judicial, a magistrada chegou a afirmar: “deveremos então concluir que o serviço não poderá mais ser prestado, sob pena de privilegiar inúmeros indivíduos que se utilizam impunemente do aplicativo Whatsapp para prática de crimes diversos (...)”. No limite, seu entendimento é de que se não puder ser introduzida uma vulnerabilidade na criptografia do aplicativo, ele não poderá mais ser acessado por internautas no Brasil.

    Os bloqueios sucessivos do mensageiro motivaram recente declaração do Ministro interino da Justiça, Alexandre de Moraes. Segundo ele, o governo interino está elaborando projeto para regulamentar tais situações, o que, muito provavelmente, implicará em tornar nossas comunicações online mais vulneráveis. Como bem afirmado por Riana Pfefferkorn (pesquisadora responsável pela área de criptografia no Center for Internet and Society da Stanford Law School), em entrevista concedida ao InternetLab, “o debate sobre a criptografia versus aplicação da lei é um debate ‘segurança versus segurança’, não um debate ‘privacidade versus segurança’”. Se não pudermos mais utilizar criptografia ponta-a-ponta ou algum mecanismo de interceptação for introduzido, nada garante que tais fraquezas não serão aproveitadas em práticas comerciais abusivas, perseguição política ou mesmo na prática de outros crimes.

    É por isso que outras alternativas devem ser utilizadas, sempre com ordem judicial. Com as informações já disponíveis atualmente, é possível saber quem está se comunicando com quem, com que frequência, em que momento, e até mesmo sua localização. Além disso, continuam sendo válidos métodos tradicionais de investigação, como testemunhas, informantes, a apreensão do próprio celular, entre outros. Não à toa, a então Relatora Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Catalina Botero, alertou em documento elaborado em 2013 que as autoridades, ao adotarem medidas punitivas no âmbito da Internet, devem procurar fazer com que essa política garanta a integridade da infraestrutura e das informações online de tal forma que proteja os usuários de ataques cibernéticos que prejudiquem seus direitos à intimidade ou à liberdade de expressão e seus direitos conexos (“Liberdade de Expressão e Internet”, pg. 57, item 121).

    A insegurança nas comunicações e o comprometimento do direito à privacidade prejudicam a liberdade de expressão. Justamente por isso a criptografia já foi defendida por diferentes Relatores Especiais para a Liberdade de Expressão da ONU (Frank La Rue e David Kaye) em seus documentos. Em relatório divulgado em 2015, David Kaye recomenda que Estados não restrinjam a criptografia, que facilita e contribui ao exercício da liberdade de opinião e expressão. Assim, proibições genéricas a esse recurso não são necessárias nem proporcionais. Ao mesmo tempo, os Estados devem evitar quaisquer medidas que enfraqueçam a segurança dos indivíduos online, tais como backdoors, padrões fracos de criptografia, entre outros (A/HRC/29/32, pg. 20, item 60).

    Quando, em nome da segurança da coletividade, coloca-se em risco a segurança, a privacidade e a liberdade de expressão de milhões de pessoas, estamos falhando na proteção dos indivíduos e da própria coletividade.