Interrupção de internet móvel após franquia
Data do Julgamento:
02/06/2016
Data da Publicação:
14/06/2016
Tribunal ou Vara: Vara Única - Rio Bananal - ES
Tipo de recurso/Ação: Procedimento do Juizado Especial Cível
Número do Processo (Original/CNJ): 0001026-53.2015.8.08.0052
Nome do relator ou Juiz (caso sentença): Juiz Wesley Sandro C. dos Santos
Câmara/Turma: -
Artigos do MCI mencionados:
Artigo 7º, IV
Ementa:
"Vistos em inspeção.
Trata-se de demanda de massa em que consumidores questionam a legalidade da interrupção dos serviços de internet móvel, após o consumo da franquia de dados contratada.
Afasto a preliminar suscitada pela ré, em razão da hipótese não se tratar de litisconsórcio passivo necessário com a ANATEL, conforme enunciado vinculante nº 271 do E.STF e enunciado nº 506 do E.STJ2.
Afasto igualmente a preliminar de incompetência deste Juízo, na medida em que a solução da lide não reclama a produção de prova técnica.
Rejeito o pedido de suspensão do feito suscitado pela ré, por não haver conexão/litispendência entre ação coletiva versando sobre interesses individuais homogêneos e ações individuais, ainda que tratem da mesma matéria, preceito em total obediência a regra do art.104 do Código de Defesa do Consumidor.
Quanto ao mérito, consigno, que o tema em apreço indica tão somente o quão instáveis são as regras norteadoras das atividades econômicas - insegurança jurídica que assola o país. O chamado marco regulatório, a estabilidade (ou instabilidade) das regras do jogo e a construção de um ambiente de confiança é o mínimo necessário para o crescimento econômico. A mudança do regramento ao sabor das conveniências é um traço marcante da cultura brasileira, sendo certo que as sociedades mais avançadas são aquelas que logram construir ambientes de coesão e confiança nas regras postas. (...)"
No presente caso entrelaçam-se duas questões importantes: (i) a possibilidade de imposição de franquias aos planos de serviço de acesso à Internet; e (ii) o princípio da neutralidade de rede, que poderia ser eventualmente arguido como instrumento de vedação à possibilidade da adoção de franquias de pacotes de dados por empresas de telecomunicações.
O caso concreto versa demandas múltiplas de consumidores que questionam a legalidade da interrupção de serviços de Internet móvel em razão do limite da franquia de dados. O juízo, ao analisar a questão, entendeu que os contratos celebrados anteriormente à mudança no plano de franquias, que antes era ilimitado, devem ser respeitados, mantendo a ilimitação do acesso aos dados até o termo contratual. Por outro lado, o juiz também reconhece que a Agência Nacional de Telecomunicações – Anatel detém competência para dispor sobre a possibilidade ou não da limitação de franquias, o que fez no âmbito da Resolução nº 632/2014, mesmo que tais disposições estejam restritas aos contratos celebrados após a entrada em vigor da nova regulamentação.
Outra regulamentação, não citada pelo juízo de 1º grau, e que revela o poder regulamentar da Anatel, é a Resolução nº 614/2014 da Anatel, que em seu art. 63, § 3º, dispõe que o plano de serviço na oferta da serviço de acesso à banda larga deve conter, entre outras informações,
Em linguagem simples, o juiz determinou que os contratos de Internet móvel, cujo objeto continha cláusulas de franquia ilimitada, e que foram celebrados antes da regulamentação da Anatel que permitia a flexibilização dos planos de franquia, não podem simplesmente ser alterados unilateralmente pela empresa de serviços de telecomunicações.
A segunda metade da decisão, contudo, traz a lume debate relevante e que se insere no âmbito propriamente dito do Marco Civil da Internet, aprovado pela Lei 12.965/2014.
A parte autora aduz que a interrupção do serviço com base em planos de franquia é sempre ilegal, já que viola o art. 7º, IV, do Marco Civil da Internet, que preceitua que o usuário da internet tem direito à “não suspensão da conexão à internet, salvo por débito diretamente decorrente de sua utilização”.
Ademais, argumento que não consta da jurisprudência em análise, mas já foi objeto de discussão em outras searas, alguns sustentam que, diante do princípio da neutralidade de rede, não se deve permitir a existência de planos de franquia, uma vez que estes, por sua própria natureza, ensejariam discriminação dos conteúdos e dos pacotes de dados que transitam pela Internet. E por que? Porque, segue o raciocínio, a redução drástica da velocidade de download e upload quando se atinge o limite máximo da franquia, só permite o uso de aplicativos que demandam baixíssimas quantidade de bits. Isso favoreceria, no limite, determinadas aplicações de Internet (para usar a nomenclatura do Marco Civil) em detrimento de outras.
A nosso ver, essa linha argumentativa não merece prosperar.
A neutralidade de rede, tal como concebida no Marco Civil da Internet, tem como finalidade precípua a de preservar a manutenção da arquitetura end-to- end da rede mundial, em que os usuários, as pontas da rede, é que detêm o poder de moldar o conteúdo e transmiti-lo, sem que o dono da infraestrutura possa interferir indevidamente na mensagem. É como o serviço telefônico, em que a rede transmite a voz, mas não altera o conteúdo do que é dito.
Ao mesmo tempo, a neutralidade de rede deve compor-se com outros princípios do próprio Marco Civil da Internet. Entre eles podemos citar a liberdade dos modelos de negócios promovidos na internet (art. 3º, VIII do MCI) e o direito do usuário de manutenção da qualidade contratada da conexão à internet.
A liberdade dos modelos de negócios na Internet, embora sujeito aos demais princípios do Marco Civil, somente deve ser restringida quando houver razões sérias e riscos factuais à circulação desimpedida de conteúdo na web. A livre iniciativa e a rentabilidade das empresas que proveem acesso e prestam serviços por meio da rede mundial, devem ser preservadas inclusive para que sejam mantidas a qualidade contratada pelo usuário.
O princípio da neutralidade de rede, in casu, não se aplica, uma vez que os planos de serviço que contenham limites de franquia são gerais e isonômicos, visando remunerar o serviço provido pelas empresas que constroem e mantêm as redes e a infraestrutura sobre a qual a internet se viabiliza. A neutralidade deve servir aos casos de condutas deliberadas de discriminação ou degradação de tráfego, nos termos do art. 4º do Decreto nº 8.771/2016, o que não parece ser o caso de planos de serviço com franquia limitada.