Telefonia celular e neutralidade de rede
Data do Julgamento:
30/03/2015
Data da Publicação:
17/04/2015
Tribunal ou Vara: 12ª Vara Cível - Recife - PE
Tipo de recurso/Ação: Ação Civil Pública
Número do Processo (Original/CNJ): 0015405-06.2015.8.17.0001
Nome do relator ou Juiz (caso sentença): Juiz Marcus Vinicius Nonato Rabelo Torres
Câmara/Turma: -
Ementa:
"MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE PERNAMBUCO, devidamente qualificado nos autos, propôs ação civil pública, com pedido de antecipação de tutela, contra TIM CELULAR S/A, igualmente predicada no caderno processual. O órgão ministerial informa que a ré ofertava, aos usuários do serviço de telefone celular pós-pago, a possibilidade de acesso à internet mesmo após a expiração da franquia de dados mensalmente contratada. Nesses casos, a velocidade da conexão seria reduzida, porém ainda seria possível ao consumidor acessar alguns aplicativos aptos a funcionar mesmo em conexão de baixa velocidade, tal como o programa Whatsapp. Contudo, em fevereiro de 2015, a requerida noticiou que as regras do referido serviço de internet seriam alteradas, e, após o dia 27.02.2015, não mais seria mais possível aos assinantes do plano pós-pago acessar a rede mundial de computadores após a utilização da franquia mensal. Assim, de acordo com a nova regra, o acesso à internet somente seria disponibilizado ao cliente que desembolsasse uma quantia extra para a contratação de um pacote adicional. Dessa feita, o parquet sustenta a tese de que a alteração unilateral do contrato pela empresa violou os arts. 6º, V, e 51, X e XIII, do CDC, provocando onerosidade excessiva ao consumidor, bem como o desequilíbrio da relação jurídica consumerista. Aduz, ainda, que tal modificação afrontou o princípio da neutralidade da rede, porquanto, consoante Lei n.º 12.965/2014, o fornecedor dos serviços de internet não pode filtrar o que o seu usuário acessa. (...)"
-
Esta decisão, uma das primeiras no Brasil a mencionar o princípio da neutralidade da rede previsto nos arts. 3º, IV e 9º e seus parágrafos do Marco Civil da Internet, Lei nº 12.965/14, embora sem que tenha entrado neste mérito específico em sede de cognição sumária, não exauriente, foi o prextexto ideal para contarmos com a colaboração do "pai da internet brasileira", Demi Getschko, trazendo seus valiosos ensinamentos acerca do tema, que é ainda pouquíssimo explorado pela doutrina jurídica especializada.
A decisão guarda sua relevância também por ter celebrado "a importância do acesso à internet como essencial ao exercício da cidadania, sobretudo nos dias atuais", e por sacramentar que:"há de se entender o direito de acesso à internet como um direito fundamental, notadamente no que tange aos valores de cidadania dispostos no art. 1º, II da Carta Cidadã".
E ainda, por ter observado que:
"o bloqueio da internet (...) priva os serviços de informação oferecidos na web, tal como bibliotecas digitais, redes sociais, banco online, comércio eletrônico, trabalho à distância, sendo muitos desses usufruídos com internet de baixa conexão."
Todos os comentários neste site (Observatório do Marco Civil da Internet) não fazem referência aos casos concretos e seus fatos – muito menos às decisões judiciais especificamente - o que é sempre discutido, na realidade, é o Direito “em tese”, o rumo tomado pela jurisprudência, os aspectos da tecnologia da informação (informática e telemática), o direito material e o direito processual envolvido e suas relações com o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014).
O Marco Civil acaba de completar um ano de existência. Um dos pontos de maior debate é como deve ser tratada e aplicada a neutralidade na Internet. Tenta-se aqui uma abordagem técnica, sem viés econômico ou de classificação por mérito de nada. O fato de pessoalmente gostarmos ou não de algo não deveria afetar sua possibilidade legal.
De início é importante ter em mente que o objeto buscado no Marco Civil é a neutralidade da própria rede, sem que se isso se estenda a modelos de negócio, adequados ou não, práticas anticoncorrenciais, antiéticas etc. Para todas essas questões há instrumentos e instâncias adequadas, que precedem o Marco Civil e o complementam e de que se deve lançar mão sempre que algo de incorreto seja detectado. O MC tem escopo de neutralidade voltado à proteção dos princípios da rede, mantendo-a livre e aberta.
A neutralidade de que trata o MC é a do “acesso à Internet”, tanto para o usuário final como para atores internos à rede, com os que trabalham com roteamento e encaminhamento de pacotes nos diferentes níveis. E, descrita numa forma sucinta, a neutralidade pretende impedir que o destinatário receba um visão deformada e filtrada da rede. A rede que alguém recebe é a que ele deve repassar adiante.
É claro que há muitos locais na rede mundial que não são atingíveis por todos os usuários. Sítios de segurança, de alguns governos, de regiões específicas, podem impedir acesso a identificadores IP que constem de suas listas de bloqueio por algum motivo. Desta forma, a rede que se vê de algum ponto é a “rede possível”, não a “rede ideal”. O que se deseja, então, é que essa “rede possível” seja repassada, sem alterações, aos que estão abaixo na cadeia, até chegar ao usuário final. Há países que filtram serviços, sítios que filtram origens, áreas não atingíveis da rede. Mas o “cenário possível” que um provedor vê da rede deve ser passado sem filtragens, sem privilégios e sem distorções, também ao usuário final.
Outro ponto importante a destacar é que a neutralidade acima descrita abrange o serviço prestado de “acesso à Internet”, mas não o simples uso da Internet como ferramenta de transporte. Há serviços sobre a Internet que não são de “acesso à rede” apesar de usarem a Internet. Há redes privadas montadas sobre a Internet, há acessos específicos e serviços limitados que se sustêm na Internet, mas que não se definem como “acesso à rede”. Hoje a grande maioria dos serviços de banco, da conexão de instituições com suas filiais, de funcionários trabalhando para sua empresa remotamente, usam a Internet. Não há como, entretanto, se falar em neutralidade nesses casos de sub-redes limitadas, privadas e restritas, mesmo que montadas sobre a mesma estrutura aberta que todos usamos. O que se precisa proteger é objeto do contrato de “serviço de acesso à Internet”. O contratante não pode levar “gato por lebre” e deve obter a mesma visão da rede que seu provedor acima na cadeia tem, sem nada ser omitido ou privilegiado.
Outro fator complicante dessa descrição é que a Internet fixa (e também o acesso WiFi) tem pressupostos que vem da origem da própria rede, mas o acesso móvel, que usa tecnologias de telefonia celular 3G, 4G etc, tem origem no modelo telefônico tradicional. Essa diferença de “DNA” destas duas formas de acesso faz com que, no acesso fixo ou de WiFi, o natural seja contratar uma banda e usá-la ao talante do usuário. Paga-se proporcionalmente pela largura de banda e não pelo tráfego. Enquanto no modelo, que tem “DNA” de telefonia, as operadoras optaram por calcular o custo do acesso pelo tráfego gerado e não pela banda: há uma “franquia” em seu plano celular para uso da Internet. Indo-se mais longe nessa dicotomia, no modelo fixo, todo o serviço pode ser considerado “0-R” (“zero rating”) dado foi contratada uma banda, uma velocidade. No modelo móvel, os serviços “gastam” a franquia, até que ela se esgote. Não são, em geral “0-R”.
Examinemos melhor o “0-R” durante a vigência da franquia (não se discutirá aqui o que acontece quando a franquia se esgota, já que esse é um assunto que está em debate jurídico e antecede o próprio debate de neutralidade). Se um serviço se dispõe a “pagar” a parte de uso da nossa franquia, isso feriria ou não a neutralidade da rede?
De início é claro que na Internet coexistem serviços pagos e serviços grátis, mas não parece ser esse o caminho para debater o “0-R”. Analogias são sempre deficientes, mas podem ser ilustrativas. Vejamos então o modelo telefônico comum: há números que, por serem de uso emergencial, ou por pertencerem a empresas que pretendem facilitar o acesso de usuários que sequer tenham crédito de minutos, liberam o usuário do pagamento daquela chamada. É, por exemplo, o caso do conhecido serviço 0800. Também há a situação de telefones pré-pagos com franquia esgotada: eles conseguem ainda receber chamadas, porque quem paga é quem chama e não o chamado. Em nenhuma dessas situações imagina-se que há quebra de neutralidade na telefonia. Cada um liga para onde quer, com o detalhe de que, se o telefone chamado é um 0800, isso não gerará gasto em sua conta.
No acesso móvel à Internet, uma vez aceito o modelo de franquia, o usuário terá todo o direito de usar integralmente seu crédito, para ir aonde quiser na rede. Se há serviços que não abatem de seu crédito, isso não diminui em nada seu direito de ir por sua livre escolha ao destino que escolheu. A tese aqui é que “dentro da franquia contratada, se determinados serviços não a consomem por algum acordo, o usuário não perde nada do que pode acessar”. Claro, entretanto, que se houver privilegiamento de tráfego ou deterioração proposital de outros serviços, a neutralidade do acesso estará sendo ferida. A tese deve ser complementada com “ressalte-se que não pode haver degradação ou privilégio no encaminhamento de pacotes”. Se aceita a tese, a gratuidade de acesso na forma de “0-R não fere a neutralidade.
Um ponto a ressaltar, que não diz respeito à netralidade de rede, mas que é um alerta para a ação de outros órgãos, é que espera-se que a oferta desse tipo de serviço seja transparente e aberta aos que o queiram contratar. Da mesma forma que qualquer empresa pode contratar um 0800 como estratégia de mercado, qualquer provedor de serviço deveria, a priori, poder oferecer na rede o seu serviço com pagamento reverso, o “0-R”.
Finalmente, um último ponto que é bom debater. E quanto às exceções? Há algumas já em vista? Foi dito acima que a “rede que alguém recebe deve ser a rede que ele repassa, sem distorções”, entretanto (...) pode ser que a rede esteja sendo usada para um ataque de “negação de serviço”. Nesse caso, acessos de origens fictícias, ou de máquinas cooptadas, tentam derrubar um sítio ou um serviço válido. Para preservar o lídimo acesso dos que querem usar esse serviço, é possível que possa haver, temporariamente e com justificativa clara, filtragem dos acessos falsos e artificiais, que estão gerando o ataque. Se esse é o caso, o bem maior sobrepõe-se, e o provedor, a pedido do atacado e em colaboração com ele, pode filtrar acessos não legítimos até que o ataque cesse ou se amenize. Há que se tomar o importante cuidado de justificar e documentar todo o processo mas, lembremos, a Internet sempre foi uma rede colaborativa e um provedor correto e bem-intencionado tratará de colaborar de boa-fé para que os serviços válidos não sofram quebra de continuidade. Assim, um ataque de “negação de serviço” justificaria uma momentânea e controlada filtragem, onde os falsos acessos são bloqueados antes da porta do serviço atacado para preservar o direito dos acessos legítimos.
A regra de ouro para o sucesso do MC é apoiá-lo e mantê-lo em seu escopo de criação, sem que seja sobrecarregado com funções que extrapolem a proteção da rede e de seus usuários. E nossa preferência, ou julgamento pessoal, sobre os méritos e qualidades de um serviço ou outro, não pode se sobrepor à liberdade que a contratação do “serviço de acesso” à Internet prevê.