Suspensão de serviço de provedor de aplicações
Data do Julgamento:
26/02/2015
Data da Publicação:
26/02/2015
Tribunal ou Vara: Tribunal de Justiça do Piauí - TJPI
Tipo de recurso/Ação: Mandado de Segurança
Número do Processo (Original/CNJ): 0013872-87.2014.8.18.0140
Nome do relator ou Juiz (caso sentença): Des. Raimundo Nonato da Costa Alencar
Câmara/Turma: Monocrática
Artigos do MCI mencionados:
Artigo 3º, VI e artigo 18
Ementa:
"Tratam-se de dois mandados de segurança, com pedido liminar, impetrados por Global Village Telecom S.A., Empresa Brasileira de Telecomunicações S.A. (Embratel) e Claro S.A. contra ato do Juiz de Direito da Central de Inquéritos da Comarca de Teresina, o qual determinou aos diretores das impetrantes que, no prazo de vinte e quatro horas, suspendesse em todo o território nacional, até o cumprimento da ordem judicial proferida no processo n. 0013872-87.2014.8.18.0140, o tráfego de dados por meio aos domínios whatsapp.net e whatsapp.com, bem como todos os seus subdomínios e todos os outros domínios que contenham whatsapp.net e whatsapp.com em seus nomes. (...)"
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Não é a primeira vez que se tenta bloquear ou suspender judicialmente um serviço inteiro em detrimento aos usuários de boa fé. Podemos citar um dos primeiros casos análogos como sendo o da atriz Daniela Cicarelli, no início de janeiro de 2007, que requereu em juízo o bloqueio de vídeo publicado no serviço Youtube sem sua autorização. Mais recentemente houve outro caso em Santa Catarina, de cunho eleitoral, cuja decisão judicial visou bloquear o Facebook por 24hs, em vista da publicação de "material depreciativo" contra um vereador de Florianópolis. Cada qual com suas peculiaridades e características, mas com resultados semelhantes - e muitas vezes indesejados.
Resultados polêmicos em detrimento da liberdade de imprensa e direito à informação, e que instigam a opinião pública, precisam sempre ser encarados com ceticismo e cautela. Vários são os enfoques possíveis, eis alguns deles, observando que a liminares em Mandado de Segurança têm eficácia apenas em relação aos impetrantes:
1-) Do segredo de justiça: o processo originário tramita em segredo de justiça. Em uma decisão de intensa magnitude, é previsível toda uma gama de elocubrações e conjecturas, até as que se aproveitam para disseminar dúvidas e incertezas, como as que apregoam que o Marco Civil justificou a prática de censura. Desta forma, embora eventual pedido de decretação de segredo de justiça se justifique - por se tratar, por exemplo, de imagens de pornografia infantil - o interesse público resta prejudicado diante da divulgação apenas parcial na imprensa, e a situação acaba por gerar insegurança jurídica. Houve notícias, inclusive, de migração para outros serviços em função da pretensa suspensão.
2-) Da desproporcionalidade da medida: o bloqueio ou suspensão de todo um serviço é medida extrema e radical, e caberiam várias analogias para exemplificar tal desproporção. Seria algo mais ou menos assim: uma concessionária de rodovia federal que fosse obrigada, por ordem judicial, a entregar filmagens de determinada praça de pedágio. Em não observando o cumprimento da ordem, o juiz ordenaria o fechamento de toda a estrada.
É de se perguntar se as astreintes, ou multa diária, já não seriam suficientes (se e quando exequiveis), ou se haveria outra alternativa, outra medida de coerção que não resultasse em impacto tão danoso inclusive para a imagem do próprio Judiciário, que (erroneamente) passa a ser o alvo da frustração dos usuários do serviço constrito.
De qualquer sorte, entendemos que a medida judicial extrema tem lastro no Código de Processo Civil, verbis:
Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.
(...)§ 5º Para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial. (Redação dada pela Lei nº 10.444, de 7.5.2002)
3-) Da ineficácia da medida: além de geralmente desproporcionais, medidas constritivas radicais acabam por se mostrar ineficazes do ponto de vista prático. É tecnicamente dificultoso conseguir suspender ou bloquear, efetivamente, um serviço de provimento de aplicações em um determinado território, sendo a própria internet um "território" sem fronteiras - o chamado ciberespaço.
A Grande Rede tem um caráter descentralizado, seus protocolos e sua arquitetura fazem com que as rotas desviem os obstáculos e procurem caminhos alternativos. A colocação de filtros é também contrária aos princípios mais basilares da Internet, que deve permanecer livre e aberta e acessível. Ademais, há toda uma sorte de mecanismos, programas e configurações para contornar eventuais bloqueios ou filtros. Basta um pouco de conhecimento de informática, ou alguma disposição para aprender.
4-) Da inexistência de sede do WhatsApp no Brasil. A quem pertence tal aplicativo? A empresa possui sede no Brasil? A 9ª Câmara de Direito Privado do TJSP enfrentou a questão em outubro de 2014 (íntegra disponível no OMCI) e destacamos:
"A alegação da agravante de que não possui gerência sobre o Whatsapp (que, por seu turno, tem sede apenas nos EUA) não se sustenta, conquanto notória a aquisição, pelo FACEBOOK do referido aplicativo (que somente no Brasil, conta com mais de 30 milhões de usuários).
Bem por isso, o fato de Whatsapp não possuir representação em território nacional não impede o ajuizamento da medida em face do FACEBOOK (pessoa jurídica que possui representação no país, com registro na JUCESP e, como já dito, adquiriu o aplicativo referido)."
5-) Da inaplicabilidade do Marco Civil da Internet para a prática de censura. Apesar da decretação de segredo de justiça, houve a divulgação de nota à imprensa por parte da Secretaria de Segurança Pública do Governo do Estado do Piauí, enfatizando que "todas as representações e decisões judiciais (...) foram tomadas com base na lei que instituiu o disciplinou o Marco Civil da Internet".
O Marco Civil foi criado justamente para evitar situações que pudessem cercear as liberdades e prejudicar o exercício da liberdade de expressão e o direito à privacidade. Em virtude do segredo de justiça, cogitou-se de diversos dispositivos que poderiam ter sido invocados pelo julgador, correta ou incorretamente.
Pernóstica, no nosso entender, a atribuição de "culpa" do Marco Civil na decisão de suspensão do serviço, atacada no Mandado de Segurança. O caso, segundo noticiado, envolve o descumprimento de ordem judicial de remoção de conteúdo gerado por terceiros.
O artigo de aplicabilidade mais provável é o art. 19, que prevê a responsabilização civil do provedor de aplicações em função de conteúdo gerado por terceiros - e apenas se "após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente".
Ainda, é bom lembrar que, segundo disposto no art. 18, "o provedor de conexão à internet não será responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros".
Podemos concluir que são necessárias soluções judiciais mais eficazes (e menos impactantes ao interesse público) para situações extremas envolvendo a Internet, bem como é necessário que empresas que aqui prestem serviços, direta ou indiretamente, atendam e obedeçam a legislação local e as ordens judiciais emanadas pelo Estado-juiz. O grande desafio atual é, portanto, concliliar este binômio.
Por fim, destacamos o disposto no novo Código de Processo Civil, e que, salvo melhor juízo, substituirá o disposto no atual art. 461, transcrito acima. Ainda não nos debruçamos sobre a nova legislação a ser sancionada, mas em seu caput não mais é caso de "ação que tenha por objeto", mas de "cumprimento de sentença que reconheça". Verbis:
Art. 550. No cumprimento da sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de fazer ou de não fazer, o juiz poderá, de ofício ou a requerimento, para a efetivação da tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente, determinar as medidas necessárias à satisfação do exequente.
§ 1º Para atender ao disposto no caput, o juiz poderá determinar, entre outras medidas, a imposição de multa, a busca e apreensão, a remoção de pessoas e coisas, o desfazimento de obras e o impedimento de atividade nociva, podendo, caso necessário, requisitar o auxílio de força policial.
(...)
Determinações judiciais para instrução de processos relativos a crimes praticados pela internet no sentido de determinar fornecimento de dados, registros e comunicações de usuários suspeitos não são incomuns no país e, do mesmo modo, é a recusa em fornecê-los. O acesso a esse tipo de informação é, não raro, determinante para o sucesso de investigações de crimes praticados virtualmente e sua recusa deve ser sancionada, contudo, apresenta-se equivocado o embasamento desse tipo de reprimenda no Marco Civil da Internet (MCI).
A Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014 (MCI), estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil. Como um dos fundamentos da disciplina do uso da rede no país prevê sua finalidade social (art. 2º, VI). Essa disciplina também tem como objetivo a promoção do direito de acesso à internet a todos (art. 4º, I), e, igualmente, como garantia dos usuários, a inviolabilidade e sigilo do fluxo de suas comunicações, bem como de suas comunicações privadas armazenadas, salvo por ordem judicial (art. 7º, II e III).
Em capítulo acerca da provisão tanto de conexão à internet quanto de aplicações, a Lei estabelece regras específicas quanto à proteção aos registros1, aos dados e às comunicações privadas, sendo que “em qualquer operação de coleta, armazenamento, guarda e tratamento [dessas informações] [...] deverão ser obrigatoriamente respeitados [...] os direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e dos registros” (art. 11).
A regra, portanto, é o tratamento sigiloso dos registros e comunicações pelos citados provedores e sua quebra sujeita o infrator às sanções, cumuláveis, de advertência, multa, suspensão temporária e/ou proibição de exercer a coleta, armazenamento, guarda e tratamento desse tipo de informação (art. 12).
Ao estabelecer tais sanções, o art. 12 refere-se à violação de normas específicas, aquelas previstas pelos arts. 10 e 11. Em outras palavras, as citadas penas aplicam-se ao dever de respeito à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das partes envolvidas e ao direito à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e dos registros no exercício das atividades relativas à guarda, coleta, armazenamento, tratamento e disponibilização de registros de conexão e de acesso a aplicações; dados pessoais; e conteúdo de comunicações privadas.
Desse modo, a suspensão temporária não é sanção decorrente da recusa de fornecimento desses dados diante de determinação judicial, já que as ditas sanções destinam-se exatamente à proteção da privacidade e sigilo. Assim, não é possível, a partir dos arts. 11 e 12 do Marco Civil da Internet, responsabilizar detentores de rede ou de aplicações pelo não fornecimento de dados, uma vez que os dispositivos estabelecem, exatamente, a proteção de tais dados e sanções para o desrespeito a essa regra.
A responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades apresenta-se também como princípio da disciplina do uso da internet no país (art. 3º, VI). O pressuposto se coaduna com o Decálogo editado pela Resolução CGI.br/RES/2009/003/P, que estabelece princípios para a governança e uso da internet no Brasil:
A Internet utiliza-se de arquitetura aberta, em que não há núcleo central (end-to-end architecture), formada por diversas redes, onde se instalam as aplicações. Trata-se de um espaço de interação, cuja natureza deve ser preservada nos termos do art. 3º, VII. Se a cada agente cabe responder pelas decorrências de suas atividades, não cabe ao provedor de conexão ou de aplicação a responsabilidade pela prática de crime, ainda que o infrator o tenha cometido na rede de determinada operadora de telecomunicações ou por meio de determinada aplicação de comunicação. Isso porque os provedores de conexão disponibilizam apenas o serviço de acesso à internet a partir de suas infraestruturas e os provedores de aplicações disponibilizam conteúdo ou apresentam-se como plataformas intermediadoras para troca de conteúdos.
Desse modo, a desobediência a decisão judicial com recusa de fornecimento de informações deve ser sancionada com as medidas processuais cabíveis, sendo inadequada aplicação da suspensão temporária prevista pelo art. 12 do MCI, por meio de determinação a provedor de conexão, para punir aplicação desidiosa.
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1 Art. 5º Para os efeitos desta Lei, considera-se: [...] VI - registro de conexão: o conjunto de informações referentes à data e hora de início e término de uma conexão à internet, sua duração e o endereço IP utilizado pelo terminal para o envio e recebimento de pacotes de dados; [...] VIII - registros de acesso a aplicações de internet: o conjunto de informações referentes à data e hora de uso de uma determinada aplicação de internet a partir de um determinado endereço IP.