Expressão religiosa e liberdade de expressão

Data do Julgamento:
29/05/2018

Data da Publicação:
07/06/2018

Tribunal ou Vara: Tribunal Regional Federal da 2a Região - TRF2

Tipo de recurso/Ação: Agravo de Instrumento

Número do Processo (Original/CNJ): 0029016-68.2016.4.02.5101, 0006182-14.2017.4.02.0000 e 0003468-18.2016.4.02.0000

Nome do relator ou Juiz (caso sentença): Des. Federal Ricardo Perlingeiro

Câmara/Turma: Turma Espec. III - Administrativo e Cível

Artigos do MCI mencionados:

Artigo 15 e artigo 22

Ementa:

"AGRAVO DE INSTRUMENTO. ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA. ARTIGO 300 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. ARTIGO 22 DO MARCO CIVIL DA INTERNET. EXIGÊNCIA DE GUARDA DE REGISTRO DE DADOS DE CONEXÃO DE USUÁRIO POR SEIS MESES. PERICULUM IN MORA. VÍDEOS COM CONTEÚDO REFERENTE À CRENÇA RELIGIOSA. LEI Nº 7.716/89. CONTEÚDO DE NATUREZA TEOLÓGICA. IMPOSSIBILIDADE DE JUÍZO DE VERACIDADE EMITIDO PELO ESTADO. PRECEDENTE DO STJ. OBSERVÂNCIA DOS LIMITES À LIBERDADE DE EXPRESSÃO RELIGIOSA. PROSELITISMO. JUÍZOS DE DESIGUALAÇÃO. AUSENTE FUMUS BONI IURIS.
1. Agravo de instrumento interposto em face de decisão que indeferiu o pedido de tutela de urgência, em sede de Ação Civil Pública, objetivando a quebra de sigilo dos dados cadastrais e dos usuários
responsáveis pela publicação e divulgação de vídeos com conteúdo referente às religiões de matriz africana e a retirada de tal material da internet.
2. A concessão de tutela antecipada requer a existência de elementos que evidenciem a probabilidade do direito (fumus boni iuris) e de perigo de dano (periculum in mora) ou risco ao resultado útil do processo, desde que não haja perigo de irreversibilidade do comando emergencial postulado, segundo a redação do art. 300 do Código de Processo Civil.
3. O art. 22 Lei nº 12.965/2014, o Marco Civil da Internet, permite o acesso aos registros de conexão ou de registros de acesso a aplicações de internet, quando necessário para formar conjunto probatório em processo judicial cível ou penal, mediante requerimento que contenha fundados indícios da ocorrência do ilícito; justificativa motivada da utilidade dos registros solicitados para fins de investigação ou instrução probatória; e período ao qual se referem os registros, “sem prejuízo dos demais requisitos legais”. Sendo assim, somente será admitido o fornecimento de tais registros se atendidas, cumulativamente, as exigências do art. 22 do Marco Civil da Internet e do art. 300 do Código de Processo Civil.
4. Entretanto, o fornecimento de informações na rede mundial de computadores está condicionado à guarda de tais registros de conexão e de acesso exigida do provedor de aplicações de internet somente pelo prazo de 6 (seis) meses, nos termos do caput do art. 15 do Marco Civil da Internet. Sendo assim, há perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo quando indeferido o pedido de tutela provisória que verse sobre quebra de sigilo de dados cadastrais mantidos na rede mundial de computadores, dado que o transcurso de tempo superior ao exigido para o armazenamento acarretaria possível perda dos registros de acesso, fato que impossibilitaria, de igual modo, o posterior requerimento de acesso à informações, as quais já não mais estariam conservadas pelo provedor de aplicações de internet. Sendo assim, não sendo possível a obtenção de informações necessárias para formar conjunto probatório em processo judicial cível ou penal, impõe-se expresso risco quanto à utilidade do provimento jurisdicional final.
5. A verificação de indícios ato discriminatório à religião, nos termos do art. 20 da Lei nº 7.716/89 deve ser sinal para a concessão do pedido de fornecimento de dados advindos de aplicações de internet, os quais, em contrapartida, na hipótese de serem constatados, ratificam a plausibilidade jurídica do pedido de retirada de conteúdo da rede mundial de computadores, uma vez que é medida assegurada no parágrafo 3º do art. 20 da Lei nº 7.716/89.
6. Assertivas que afetam o universo de verdades religiosas são impassíveis de valoração pelo Estado, o qual, uma vez secularizando-se, passa a negar a fundamentação de si mesmo em razões religiosas, e ampara-se no uso público da razão para proferir decisões judiciais ou instituir atos da Administração Pública. Dessa forma, crê-se que não mais se configura como tarefa do Estado reconhecer religião ou crença verdadeira ou conferir legitimidade a um axioma teológico, v.g. a denominação atribuída a um suposto demônio como orixá, vez que a referida veracidade, quanto aos elementos espirituais, deve se dar em um ambiente externo, teológico, às discussões públicas.
7. No julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 134.682, o Supremo Tribunal Federal entendeu não ser cabível, ao Poder Judiciário, censurar, por razões estritamente metajurídicas, manifestações de pensamento. Há uma correlação entre liberdade de expressão e liberdade religiosa Um indivíduo não pode ser privado de expor a sua crença ou de afirmá-la como verdadeira frente às demais, à exceção delimitações previstas em lei que digam respeito à ordem pública e às demais liberdade alheias, dado que, como direito e garantia fundamental, a liberdade religiosa não dispõe de caráter absoluto.
8. Não sendo possível implementar juízo moral frente ao conteúdo religioso de afirmações, e considerando se tratar de um sensível embate entre liberdade religiosa e liberdade de expressão, deve ser feita avaliação mais criteriosa para constatar a observância ou não dos limites do exercício das liberdades constitucionais, inclusive daquela que diz respeito à liberdade de expressão religiosa, que abrange o direito de empreender proselitismo e de explicitar atos próprios de religiosidade. Em síntese, investigar, em maior profundidade, em que medida o proselitismo religioso é constitucionalmente admitido e em quais hipóteses desborda das balizas da liberdade de expressão religiosa.
9. Conforme o entendimento da Corte Suprema, a investigação deve incidir nos “juízos de desigualação”, fases atribuídas ao proceder inerente ao proselitismo que objetiva angariar novos fiéis ou direcionar o comportamento dos adeptos à religião, compreendendo três etapas: a primeira, em que explicita a desigualdade entre grupos e/ou indivíduos, de caráter cognitivo; a segunda, em que se assenta suposta relação de superioridade entre eles, de viés valorativo; e a terceira, em que o agente legitima dominação exploração, escravização, eliminação, supressão ou redução de direitos fundamentais do diferente que compreende inferior. Deve se investigar, em cada caso concreto, se o método de persuasão inerente ao contexto religioso, com o aludido fim de afastar e negar a suposta crença, não perpassa a terceira etapa do juízo de desigualação, a qual implica suprimir religião alheia no sentido de violar a dignidade humana dos seus praticantes, suprimindo-lhes ou reduzindo-lhes direitos fundamentais sob razões religiosas. Somente após a terceira etapa do juízo de desigualação se configura conduta ou discurso discriminatório. Precedente: STF, 1ª Turma, RHC 134.682, Rel. Min. EDSON FACHIN, DJE 10.12.2016.
10. Ainda que a associação entre o sagrado de uma religião e entidades demoníacas promova uma repulsa pelo caráter depreciativo de uma crença em relação à outra, é necessário verificar se a liberdade de expressão religiosa de quem a proferiu perpassa as três etapas de juízos de desigualação. Aferida a conduta discriminatória, se justifica a censura às manifestações de pensamento, inclusive aquelas que referentes à liberdade de expressão religiosa.
11. No caso vertente, uma vez não relatados imperativos direcionados aos adeptos das crenças afrobrasileiras com o intuito de lhes suprimir direitos fundamentais, mas sim alegações quanto à procedência ou natureza teológica de entidades espirituais, objetivando a conversão ou a “salvação” de adeptos de uma religião, embora mediante métodos de persuasão não razoáveis ou questionáveis, não parece incidir a figura atinente à conduta discriminatória, cuja constatação está condicionada ao esgotamento das fases de juízos de desigualação, a ser aferido em análise mais meticulosa do conteúdo dos vídeos pelo Juízo a quo.
12. Agravo de instrumento não provido."