Perfis falsos e responsabilidade solidária
Data do Julgamento:
05/07/2017
Data da Publicação:
06/07/2017
Tribunal ou Vara: Tribunal de Justiça de Santa Catarina - TJSC
Tipo de recurso/Ação: Apelação Cível
Número do Processo (Original/CNJ): 0301825-09.2015.8.24.0139
Nome do relator ou Juiz (caso sentença): Des. Jairo Fernandes Gonçalves
Câmara/Turma: 5ª Câmara de Direito Civil
Artigos do MCI mencionados:
Artigo 5º, VII; artigo 18 e artigo 19
Ementa:
"APELAÇÕES CÍVEIS. DIREITO CIVIL. LEI N. 12.965/2014. MARCO CIVIL NA INTERNET. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER CUMULADA COM INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. UTILIZAÇÃO DE NOME E IMAGEM DA AUTORA PARA CRIAÇÃO DE PERFIS FALSOS EM REDE SOCIAL (FACEBOOK). PLEITO DE EXCLUSÃO DAS CONTAS INIDÔNEAS E INDENIZAÇÃO POR ABALO ANÍMICO. PARCIAL PROCEDÊNCIA NA ORIGEM.
INSURGÊNCIA DA AUTORA. (1) MAIORIDADE CIVIL. ALCANÇADA. REGULARIZAÇÃO PROCESSUAL. PEDIDO DE GRATUIDADE DA JUSTIÇA. ELEMENTOS SUFICIENTES PARA DEFERIMENTO DA BENESSE EM GRAU RECURSAL. ACOLHIMENTO. (2) DANOS MORAIS. PEDIDO ELABORADO CONTRA O PROVEDOR. ESPECIFICIDADE DO CASO CONCRETO. PEDIDO DE EXCLUSÃO DOS PERFIS FALSOS, ISOLADAMENTE, POR NOTIFICAÇÃO EXTRAJUDICIAL. AUSÊNCIA DE SOLICITAÇÃO DE DADOS SIGILOSOS. CONTRANOTIFICAÇÃO PELA PARTE RÉ. DESCASO. AUSÊNCIA DE RESPOSTA OU DE INDISPONIBILIDADE DAS CONTAS. OMISSÃO CONSTATADA. LESÃO AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE. PRESCINDIBILIDADE DE SUBMISSÃO DO CASO À APRECIAÇÃO JUDICIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL SOLIDÁRIA DO PROVEDOR POR CONTEÚDO GERADO POR TERCEIROS EVIDENCIADA. DANO MORAL CONFIGURADO. INDENIZAÇÃO FIXADA.
Considerando que o nome e a imagem de um indivíduo integram sua esfera de direitos da personalidade, evidente que a criação de perfil falso por terceiro, sem autorização, é capaz de, por si só, causar dano moral, razão pela qual o site de relacionamento pode ser responsabilizado civilmente quando deixa de atender pedido de exclusão de perfis falsos, independentemente de ordem judicial.
A situação em análise não se confunde com os casos em que há necessidade de emissão de juízo de valor pelo Poder Judiciário acerca do conteúdo publicado em rede social, hipótese em que é imprescindível resguardar a garantia à liberdade de manifestação e à vedação à censura.
RECURSO DO RÉU. PLEITO DE ALTERAÇÃO DO ÔNUS SUCUMBENCIAL. REFORMA DA DECISÃO. PLEITOS EXORDIAIS JULGADOS INTEGRALMENTE PROCEDENTES. ÔNUS SUCUMBÊNCIAS IMPUTADOS À PARTE RÉ. RECURSOS CONHECIDOS, PROVIDO O DA AUTORA E DESPROVIDO O DO RÉU."
A decisão comentada vem do campo cível e aborda questões referentes ao acesso e modificação de dados mantidos no exterior, à remoção de perfis falsos de rede social e à responsabilidade do provedor de aplicação frente à notificação de existência de perfil falso em sua plataforma.
A autora da ação, que era menor à época dos fatos, descobriu que existiam diversos perfis falsos com seu nome, sobrenome e fotos em uma rede social que utilizava com frequência (são citados pelo menos dezoito perfis falsos nas decisões comentadas), perfis esses que faziam publicações e pareciam agir de modo a denegrir a imagem da autora. Diante disso, a autora notificou a rede social sobre a existência de tais perfis fakes, exigindo a remoção deles. A rede social respondeu à notificação, mas não chegou a tomar medidas para remoção do perfil, o que levou a uma ação judicial.
A sentença de primeiro grau ordenou a exclusão dos perfis falsos em questão, mas julgou que a empresa não poderia ser responsabilizada por eventuais danos sofridos pela autora por ter atendido prontamente à liminar que determinava a remoção dos perfis, atraindo a aplicação dos artigos 18 e 19 do Marco Civil da Internet. O acórdão da 5ª Câmara de Direito Civil, entretanto, mantendo a ordem de remoção do conteúdo, condenou a rede social ao pagamento da indenização pedida.
O caso apresenta dois pontos de grande interesse, ambos relacionados ao Marco Civil da Internet.
Acesso a dados no exterior, jurisdição e soberania
Em função da descentralização permitida pela Internet, determinada empresa pode escolher ofertar e prestar serviços através da rede mundial de computadores, sem a necessidade antes encontrada nos segmentos tradicionais da economia de estabelecer um escritório local em cada um dos mercados em que se pretendia atuar. É assim, por exemplo, que empresas como Google, Twitter e Facebook ofertam seus serviços através de empresas localizadas nos Estados Unidos ou na Euro.
Por outro lado, também não é incomum que tais empresas, buscando atingir determinado nicho de mercado, criem subsidiárias em outros países que têm como objetivo (ou objeto social) a venda de espaços publicitários naquela rede, mas não o oferecimento da rede social em si. São essas subsidiárias que são geralmente acionadas pelo consumidor quando este tem um problema com a plataforma, apesar de não serem as responsáveis diretas pelo serviço, no papel (nos Termos de Uso ou Contrato de Serviço) ou na prática.
O problema surge quando os usuários movem ações contra as empresas subsidiárias brasileiras, buscando providências que dizem respeito a dados localizados no exterior. Isso gera problemas relacionados aos limites da jurisdição brasileira. Nesses casos as subsidiárias são compelidas, por decisão judicial, a entregar dados que não possuem ou que demandam a violação de leis estrangeiras para que sejam obtidas. Isso porque a empresa que efetivamente detém os dados buscados está sujeita às leis do Estado estrangeiro em que se encontra, não podendo entregar os dados sem uma decisão judicial válida naquele território.
No debate que se desenvolve em diversos casos ativos no Judiciário, é comum que se utilize o argumento de que a subsidiária brasileira seria uma “extensão” da empresa americana, equiparando-a a uma filial ou a uma representante (coisa que não é).
Cada indivíduo ou agremiação de indivíduos (associações, empresas, fundações) possuem o que se chama comumente de personalidade jurídica, significando a capacidade individual de ter direitos e deveres. Assim, duas empresas, cada uma dotada de sua própria personalidade, constituída por diferentes objetos sociais, diferentes organizações internas, diferentes direitos e obrigações, devem ser consideradas como empresas diferentes.
O fato de uma das empresas deter capital social da outra também não afasta o fato de que o sócio não se confunde com a empresa, e vice-versa.
É comum também que se afirme que ocorreria violação da soberania do Brasil ao impedir-se que o Judiciário tenha acesso a dados armazenados no exterior por “mera estratégia empresarial”; que tais dados são “meio de prova brasileiro”; e que a comunicação interna, pelo envio dos dados pela empresa-mãe nos Estados Unidos à subsidiária brasileira não configuraria violação de privacidade. Estes argumentos parecem também não se sustentar.
Ao contrário do que dizem alguns, submeter a obtenção desses dados a um procedimento de cooperação não representa violação de soberania brasileira, mas sim a violação da soberania alheia. Por um princípio elementar de Direito Internacional Público (a tal respeito, confira-se a obra de Malcolm Shaw, International Law, Cambridge Univ. Press, 2003), a jurisdição, ou seja, o poder de decidir um conflito e ordenar certo comportamento encontra seus limites na demarcação territorial do Estado. Em suma, o Judiciário brasileiro não pode arrogar-se no poder de decidir sobre fatos ocorridos fora de seu território se não houver nenhum elemento de conexão que o aponte como competente.
É por tal razão que as sentenças estrangeiras precisam passar por um procedimento de homologação perante o Judiciário do local onde se pretende que a decisão gere efeitos. Por tal procedimento, o Judiciário local pode avaliar se a decisão não desrespeita nenhum mandamento fundamental da ordem jurídica local, só então concedendo a tal documento o valor de decisão judicial pela ordem “execute-se”.
A alegação também comum de que tal comunicação “interna” não seria uma violação de privacidade parece contradizer o próprio inciso VII do artigo 7º do Marco Civil da Internet, que prescreve que é direito do usuário o não fornecimento de seus dados pessoais a terceiros, salvo nas hipóteses legais. Em suma, o fato de duas empresas participarem de um mesmo grupo empresarial não dá a elas o direito de compartilhar livremente dados de seus clientes.
Acima de tais questões, é preciso compreender a desejada obtenção dos dados no exterior como uma transferência internacional de dados. O Brasil há anos inspira-se no modelo europeu que, até onde se sabe, com base no princípio da proteção adequada no país de destino, poderia (e provavelmente o faria) impedir a transferência de dados pessoais de cidadãos europeus da Europa para o Brasil, uma vez que nosso país não possui até o momento uma lei geral de proteção de dados ou outras garantias dessa proteção – o Marco Civil, infelizmente, é limitado no assunto. Resta então a questão: como reagiria o Brasil caso Poder Judiciário estrangeiro buscasse alcançar, sem submeter-se às vias da cooperação internacional, dados mantidos no Brasil, violando sua soberania?
A discussão toda parece derivar do artigo 11 do Marco Civil (e seu § 2º), que diz que a Lei brasileira se aplica quando há fornecimento de serviços a brasileiros. Dizer que a Lei brasileira se aplica ao caso, entretanto, é diferente de dizer que é a Justiça Brasileira que tem poder para aplicá-la, independente da soberania dos demais países. Nesses casos, a solução passa necessariamente pelas vias legais e legítimas disponíveis ao Judiciário: a da cooperação judicial internacional.
Perfis falsos vs. ofensas
O mérito das decisões comentadas também merece atenção, por trazer debate interessante que ainda não foi pacificado. Trata-se de restringir a aplicação dos artigos 18 e 19 do Marco Civil da Internet, diferenciando em quais situações o provedor é obrigado a agir imediatamente após a tomada de conhecimento, sob pena de responsabilização, e em quais ele pode e deve aguardar uma decisão judicial que averigue a legalidade do conteúdo.
Dizem tais artigos que o provedor de aplicação só será responsabilizado por conteúdo de terceiro (de outro usuário) se não cumprir decisão judicial que determine sua remoção. Segundo o Tribunal, no entanto, deve-se considerar a finalidade precípua da norma posta pelos artigos 18 e 19, que é “assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura”.
Em resumo, essa regra serve para evitar que, diante de um texto crítico, por exemplo, – que pode ser uma crítica fundamentada ou simples tentativa de ofender alguém, esta última apenas merecendo remoção – o provedor de aplicação, com receio de ser responsabilizado, acabe removendo todo e qualquer conteúdo com algum aspecto crítico, o que poderia prejudicar a liberdade de expressão de seus usuários.
Diferentemente do que acontece com conteúdo ofensivo, que dependeria de uma avaliação de legalidade pelo Judiciário, um perfil falso é uma violação clara e objetiva que demanda imediata intervenção do provedor de aplicação. Por este motivo, o provedor pode ser considerado responsável se não agir imediatamente, diante da denúncia da vítima, para remover o conteúdo.
A discussão aparentaria, à primeira vista, situação corriqueira e bem tratada pelos artigos 18 e 19 do Marco Civil, mas os fundamentos do acórdão estabelecem distinção relativamente nova entre conteúdo ofensivo e conteúdo falso, considerando-se as principais preocupações dos envolvidos no debate sobre o projeto do Marco Civil.
É interessante verificar que os tribunais têm buscado analisar os dispositivos do Marco Civil com base no conjunto maior de valores trazidos pela própria Lei – como a liberdade de expressão, a dignidade da pessoa humana, a inimputabilidade da rede, entre outros – encontrando por vezes discussões não imaginadas quando da elaboração da lei, como prova o presente caso.
O desenvolvimento da interpretação do Marco Civil nos Tribunais é importante para sua aceitação, pelas empresas e usuários, como regra efetiva (e não como lei morta), mas é preciso acompanhar tal evolução para que não haja excessos.