Direito ao esquecimento e liberdade de imprensa
Data do Julgamento:
17/05/2016
Data da Publicação:
31/05/2016
Tribunal ou Vara: Tribunal de Justiça de São Paulo - TJSP
Tipo de recurso/Ação: Apelação Cível
Número do Processo (Original/CNJ): 1113869-27.2014.8.26.0100
Nome do relator ou Juiz (caso sentença): Des. designado Cesar Ciampolini
Câmara/Turma: 10ª Câmara de Direito Privado
Ementa:
"Direito ao esquecimento. Confronto dos direitos constitucionais à intimidade e à liberdade de Imprensa. Na forma do art. 220 da Constituição Federal e seu § 1º, “não sofrerão qualquer restrição” a “manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação”, difundidos “sob qualquer forma, processo ou veículo”. O que mais enfaticamente ainda é dito, no parágrafo, quanto à “liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social”. O limite para o pleno direito de invocação de tais dispositivos pela Imprensa é a veracidade da informação divulgada. Doutrina. Caso concreto em julgamento no qual o apelado não põe em dúvida ser veraz o fato, a notícia que não mais quer ver disponível nos arquivos digitais das apelantes. O que o autor, ora apelado, pretende equivale a uma ordem que se tenha dado, em momento menos iluminado da História da Humanidade, para queima de livros, destruição de bibliotecas. Tema em que há valioso precedente do STJ (REsp 1.334.097, LUIS FELIPE SALOMÃO) a respaldar a postulação do autor, mas, de todo o modo, está sujeito a futuro julgamento em sede de repercussão geral pelo STF (ARE 833.248, DIAS TOFFOLI). Reconhecimento da repercussão geral pelo Supremo que, todavia, não impõe o sobrestamento de outros processos nos quais a questão constitucional também se faz presente. Apenas os recursos extraordinários eventualmente apresentados é que deverão ser sobrestados (STJ-Corte Especial, REsp 1.143.677, LUIZ FUX). Sentença de procedência parcial que se reforma. Apelações dos órgãos de Imprensa providas."
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No caso em questão (Apelação nº 1113869-27.2014.8.26.0100), julgado em maio de 2016 pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP), o autor alegou que pesquisas efetuadas no Google associavam seu nome a notícias do ano de 2007, quando fora detido por participação em grupo skinhead.
Essa permanente publicidade lhe causaria constrangimento e dificuldade de inserção no mercado de trabalho. Por isso, solicitou ao Poder Judiciário que determinasse ao Google a realização de filtragem na pesquisa, de modo a impedir a associação de seu nome aos fatos referidos. Requereu, ainda, em relação aos veículos de imprensa, também partes na ação judicial, que as notícias fossem excluídas de seus respectivos sítios na Internet.
O TJ-SP denegou o pedido. Primeiro, afastou a possibilidade de serem excluídas as próprias notícias do acervo digital dos veículos de imprensa. Como mencionado na ementa do acórdão, essa providência equivaleria à queima de livros e à destruição de bibliotecas.
Nesse ponto, o parâmetro fixado na decisão é relevante, na medida em que protege a liberdade de imprensa e sustenta uma interpretação restritiva do direito ao esquecimento, vinculando-o apenas à possibilidade de desindexação de dados pessoais em sítios de busca.
A questão a ser observada é que, inexistindo razão a justificar tratamento diferenciado, devemos estender ao ambiente digital os mesmos princípios válidos para as publicações impressas. Basta lembrar que a Lei de Imprensa (arts. 61 a 64) permitia não só a apreensão de um periódico como, também, a sua destruição. Ora, se esta prerrogativa estatal é incompatível com a Constituição, conforme decidiu o STF, por que razão seria diferente ou, ainda, como seria possível restabelecê-la no ambiente digital?
Embora existam exceções, como as previstas na legislação eleitoral (por exemplo, art. 57-D, § 3º, da Lei nº 9.504/1997), o fato é que, como regra geral, informações publicadas pela imprensa, em meio físico ou digital, não podem ser apagadas, destruídas ou excluídas. Até porque, para reparar eventuais danos, existem meios menos nocivos, compatíveis com a preservação do conteúdo, tais como o direito de resposta, o pagamento de indenizações e, para os casos mais graves, a lei penal.
O segundo ponto abordado na decisão foi quanto à possibilidade de desindexação de dados pessoais e de filtragem das pesquisas a estes relacionadas. No caso concreto, segundo o TJ-SP, o pedido deveria ser indeferido, haja vista a veracidade do fato publicado, reconhecida pelo próprio autor da ação.
Em que pese se tratar de critério válido, é necessário problematizá-lo e apontar os seus limites, em especial quanto à sua aplicação isolada e à sua extensão, sem os devidos cuidados, para outras situações. Assim, cabe perguntar: sendo falsa a notícia publicada, será sempre cabível a desindexação? Ou, em sentido contrário, comprovada a veracidade dos fatos, não caberá, em nenhuma hipótese, a garantia do direito ao esquecimento?
Por um lado, há de se considerar que a liberdade de imprensa não está condicionada a juízos rígidos de veracidade. Conforme já decidiu o STF, não se pode exigir que a imprensa se atenha apenas a “verdades incontestáveis”, já que, em muitas situações, “isso seria o mesmo que inviabilizar a liberdade de informação, sobretudo de informação jornalística, marcada por juízos de verossimilhança e probabilidade”.
Assim, mesmo em hipóteses nas quais a informação não seja totalmente verdadeira ou o teor da publicação seja questionável, é possível que o direito de acesso à informação deva prevalecer sobre o direito ao esquecimento. É o caso, por exemplo, de reportagens que contenham críticas a autoridades públicas.
De outro lado, ainda que plenamente verdadeiro, é possível que um conteúdo publicado gere danos e viole a privacidade de um indivíduo. A esse respeito, o Tribunal de Justiça da União Europeia garantiu o direito de se exigir a desindexação ainda quando as listas de resultados de pesquisas se referirem “a páginas web publicadas legalmente por terceiros e que contenham informações verdadeiras sobre a sua pessoa”.
De fato, a licitude e a veracidade de uma publicação não afastam, por si sós, a violação à privacidade, mormente se considerada a questão sob o ponto de vista do consentimento e do controle sobre os dados pessoais. Segundo a Corte Europeia, entre outras situações, tal violação pode ocorrer em razão da inexatidão ou falta de atualização dos dados, bem como quando estes já não são pertinentes ou quando se demonstram excessivos, tendo em vista as finalidades de seu tratamento e o tempo decorrido.
Diante desse cenário, pode-se dizer que a decisão do TJ-SP fixa importante parâmetro decisório ao sustentar uma interpretação restritiva do direito ao esquecimento. Porém, no que concerne à desindexação de dados pessoais, o fundamento utilizado é questionável e muito limitado, em particular para a construção de uma jurisprudência mais consistente, que permita a adequada resolução de casos futuros.
O acórdão em exame suscita três questões de especial interesse para o debate sobre o direito ao esquecimento. Em primeiro lugar, o Tribunal de Justiça entendeu que o conteúdo impugnado pelo autor da demanda deveria ser protegido porque se tratava de alegação de fatos verdadeiros. O segundo ponto relevante é que o acórdão parece defender que a veracidade dos fatos publicados é um limite da liberdade de expressão, insinuando que não haveria discursos falsos não mereceriam qualquer proteção. Por fim, a terceira questão de destaque é a percepção de que a proteção constitucional prevista no art. 220 da Constituição não é mitigada em razão de o conteúdo impugnado não ter sido publicado em papel impresso, mas na internet.
Quanto à primeira questão, a veracidade da informação é essencial para delimitação das controvérsias que envolvam o direito ao esquecimento. Afinal, quando se tratar de informações objetivamente falsas e potencialmente ofensivas, o instituto da violação à honra parece ser capaz de solucionar qualquer controvérsia. Por outro lado, quando se tratar de informações verdadeiras, mas obtidas por meio ilícito, será o caso da violação à privacidade e à intimidade. Nesses casos, seria possível cogitar até mesmo da incidência dos dispositivos da lei penal, como a invasão de domicílio ou a invasão de dispositivo eletrônico (Lei Carolina Dieckmann). Assim, para que alcance autonomia conceitual, o direito ao esquecimento deve envolver a publicação de fatos públicos e verídicos. E a publicidade, aqui, deve ser definida como aquelas informações disponíveis ao público em geral sem o cometimento de atos ilícitos de invasão.
A publicação de fatos verídicos, por outro lado, está na essência da liberdade de expressão. Essa é a primeira fronteira da defesa de padrões objetivos para a proteção das liberdades comunicativas. Se as pessoas não são livres para se expressar nem quando a veracidade é incontroversa, não haverá nenhum espaço em que as pessoas possam se sentir seguras para se manifestar sem o medo da posterior sanção judicial. Além disso, a publicação de fatos verídicos recebe proteção constitucional qualificada, por força do direito à informação da sociedade em geral.
Ainda que não tenha sido objeto de menção expressa pelo acórdão sob análise, também a divulgação de informações que estavam, por alguma razão, disponíveis para qualquer um que tivesse interesse em encontra-las está no cerne da liberdade de expressão. Isso porque, também aqui, caso as pessoas não fossem livres para relatar, comentar e publicar fatos a que qualquer pessoa pudesse ter acesso lícito, seria muito difícil escapar do casuísmo ao definir o que a imprensa pode publicar e em que circunstâncias (sobre esse argumento, v. Suprema Corte dos Estados Unidos em Cox Broadcasting v. Cohn, 420 U.S. 469 (1975)). É a ideia de que, uma vez em “domínio público” – ou seja: que já estava publicamente disponível – já não é constitucionalmente legítimo obstruir ou punir sua disseminação (sobre o ponto, v. Suprema Corte dos Estados Unidos em Smith v. Daily Mail Publishing, 443 U.S. 97 (1979)).
Os critérios da veracidade e da obtenção lícita de informações já foram aplicados diversas vezes pelo Supremo Tribunal Federal (v., e.g.: STF, Rcl-MC 18638, Rel. Min. Luis Roberto Barroso; STF, Rcl-MC 18836, Rel. Min. Celso de Mello; STF, Rcl-MC 18746, Rel. Min. Gilmar Mendes). A proteção especial à divulgação de informações verídicas em decorrência do direito à informação foi objeto de destaque especial no voto da Ministra Relatora da ADIn nº 4815/DF, que julgou a matérias das biografias não-autorizadas (v. STF, ADIn 4815, Rel. Min. Carmen Lúcia). A legalidade da publicação de informações protegidas, em tese, por sigilo, mas de fato disponíveis ao público já foi debatida mais de uma vez em casos de publicação de dados sigilosos, quando jornalistas têm acesso aos autos que tramitam em segredo de justiça (v., e.g.: TRF3, Proc. 0014097-92.2014.4.03.0000, Rel. Des. Cotrim Guimarães).
Quanto à segunda questão, o acórdão vai um pouco mais além da mera afirmação de que a publicação de informações verdadeiras deve ser protegida pela liberdade de expressão. O Tribunal de Justiça deu a entender que a veracidade é o critério para legitimidade dos discursos. Essa afirmação, contudo, parece um pouco exagerada. A efetiva veracidade de uma informação é difícil de se aferir. Nem mesmo o processo judicial se fundamenta na pretensão de se encontrar a verdade absoluta, mas apenas a verdade dos autos, baseada nas provas apresentadas e na análise feita em um dado momento. Assim, surge a dúvida sobre qual seria o critério para se determinar a veracidade de uma publicação ofensiva para fins de eventual punição de seus responsáveis.
Existem diversos critérios para tanto: o dolo na falsidade da informação (v. New York Times v. Sullivan, 376 U.S. 254 (1964)); o emprego de um esforço razoável na busca da verdade (v. STF, Rcl 22.328, Rel. Min. Luis Roberto Barroso), dentre outros. O que é relevante para proteção do núcleo da liberdade de expressão é que haja um critério diferente da efetiva veracidade da informação. O que se busca evitar com isso é que, por medo de que as informações venham a se mostrar falsas no futuro, o jornalista deixe de publicar fatos que, à toda evidência – e nos limites de suas capacidades investigativas –, pareciam ser verdadeiros no momento da publicação.
A terceira questão é a relevante percepção de que o jornalismo na internet merece tanta proteção constitucional quanto o impresso. Esse ponto já foi objeto de reiteradas manifestações do STF (v., e.g.: STF, Rcl-AgR 15955, Rel. Min. Celso de Mello; STF, Rcl-AgR 19548, Rel. Min. Celso de Mello). O que é digno de nota é a tendência para relativização da separação estrita entre a proteção da imprensa e da liberdade de expressão em geral.
Com o avanço da sociedade da informação, o papel da imprensa foi muito pulverizado na figura dos usuários de internet. Existem hoje inúmeras plataformas de serviço que permitem que qualquer pessoa atinja um público amplo, que antes apenas a imprensa formal era capaz. Hoje, cada telefone é uma câmera e, cada pessoa, um repórter. Assim surgiram diversos blogs, microblogs, videoblogs, etc. que se destinam exclusivamente a divulgar informações que podem não captar a atenção da imprensa formal. Esse fenômeno é muito frequente e especialmente relevante em pequenas cidades e comunidades carentes, onde a praticidade e o custo reduzido são incentivos para o desenvolvimento dessa espécie de jornalismo individual e descentralizado.
Vale a pena, portanto, acompanhar a jurisprudência sobre essa matéria para conferir a evolução também do conceito de “imprensa” para fins da proteção constitucional específica do art. 220, inclusive nos debates sobre o direito ao esquecimento.