Acesso a mensagens e autorização judicial

Data do Julgamento:
21/03/2017

Data da Publicação:
27/03/2017

Tribunal ou Vara: Superior Tribunal de Justiça - STJ

Tipo de recurso/Ação: Recurso em Habeas Corpus

Número do Processo (Original/CNJ): 0024063-64.2016.8.07.0000

Nome do relator ou Juiz (caso sentença): Min. Ribeiro Dantas

Câmara/Turma: 5ª Turma

Artigos do MCI mencionados:

Artigo 7º, I, II e III

Ementa:

"PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA. ACESSO DE MENSAGENS DE TEXTO VIA WHATSAPP. AUSÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. GARANTIAS CONSTITUCIONAIS. ART. 5º, X E XII, DA CF. ART. 7º DA LEI N. 12.965/2014. NULIDADE. OCORRÊNCIA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CONFIGURADO. RECURSO EM HABEAS CORPUS PROVIDO.
1. A Constituição Federal de 1988 prevê como garantias ao cidadão a inviolabilidade da intimidade, do sigilo de correspondência, dados e comunicações telefônicas, salvo ordem judicial.
2. A Lei n. 12.965/2014, conhecida como Marco Civil da Internet, em seu art. 7º, assegura aos usuários os direitos para o uso da internet no Brasil, entre eles, o da inviolabilidade da intimidade e da vida privada, do sigilo do fluxo de suas comunicações pela internet, bem como de suas comunicações privadas armazenadas.
3. A quebra do sigilo do correio eletrônico somente pode ser decretada, elidindo a proteção ao direito, diante dos requisitos próprios de cautelaridade que a justifiquem idoneamente, desaguando em um quadro de imprescindibilidade da providência. (HC 315.220/RS, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 15/09/2015, DJe 09/10/2015).
4. Com o avanço tecnológico, o aparelho celular deixou de ser apenas um instrumento de comunicação interpessoal. Hoje, é possível ter acesso a diversas funções, entre elas, a verificação de mensagens escritas ou audível, de correspondência eletrônica, e de outros aplicativos que possibilitam a comunicação por meio de troca de dados de forma similar à telefonia convencional.
5. Por se encontrar em situação similar às conversas mantidas por e-mail, cujo acesso é exigido prévia ordem judicial, a obtenção de conversas mantidas pelo programa whatsapp , sem a devida autorização judicial, revela-se ilegal.
6. Recurso em habeas corpus provido para declarar nula as provas obtidas no celular do recorrente sem autorização judicial, determinando que seja desentranhado, envelopado, lacrado e entregue ao denunciado do material decorrente da medida."

Compartilhar:
  • Lucas Borges de Carvalho
    Lucas Borges de Carvalho em 29/05/2017

    No acórdão em questão, a Quinta Turma do STJ deu provimento a Recurso em Habeas Corpus, a fim de declarar a ilegalidade do acesso a mensagens de WhatsApp sem prévia autorização judicial. As mensagens haviam sido obtidas por policiais após a prisão em flagrante do réu, acusado de tráfico de drogas.

    Somando-se a precedentes da Sexta Turma (RHC nº 51.531) e da própria Quinta Turma (RHC nº 75.800), a decisão consolida o entendimento da Corte em torno da matéria, com nítido viés de proteção à privacidade no ambiente digital, em harmonia com o que dispõe o Marco Civil da Internet. A esse respeito, o art. 7º, III, da lei, é expresso ao assegurar aos usuários as garantias de “inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas e armazenadas, salvo por ordem judicial”.

    Sob essa ótica, a decisão apenas aplica ao caso concreto comando expresso da legislação em vigor, segundo o qual somente ordem judicial pode autorizar a quebra do sigilo de comunicações privadas armazenadas em dispositivos eletrônicos. Não obstante, o tema ainda é alvo de fortes controvérsias, em particular diante das dificuldades postas para a celeridade e a eficiência de investigações policiais, já bastante limitadas em razão dos escassos recursos – financeiros e humanos – disponíveis. E isso sem falar nas limitações provenientes do uso de técnicas, como a criptografia, que obstam não só o acesso a conteúdos de mensagens, como também a identificação de usuários.

    Embora esses elementos devam ser levados em consideração, o fato é que, como regra geral, os direitos individuais devem ser respeitados mesmo que à custa de algum tipo de “sacrifício” coletivo ou do interesse público. Aliás, é justamente nas situações de crise, de clamor social ou, ainda, nos casos em que a ponderação de interesses é mais complexa, que o arbítrio e o abuso estatais costumam se instaurar com mais naturalidade e sem limites efetivos, como bem demonstra o cotidiano das páginas policiais no Brasil, país – nunca é demais lembrar – de larga tradição autoritária.

    Assim é que, no contexto das limitações aos poderes de autoridades policiais, a proteção à privacidade deve ser equiparada a direitos fundamentais como a proibição da tortura, a inviolabilidade do domicílio, o sigilo da fonte e a liberdade de expressão. Todos devem ser respeitados, ainda que, supostamente, gerem custos para o deslinde de crimes e a garantia da segurança e da ordem públicas. Em última análise, em uma sociedade democrática, não há benefício maior do que a proteção aos direitos individuais.

    Isso não implica atribuir valor absoluto à privacidade, mas, tão somente, como decidido pelo STJ, que a sua restrição deve observar procedimentos legais estritos, que assegurem a proporcionalidade e o devido processo legal no curso das investigações. Tal providência é essencial, uma vez que o acesso a um smartphone permite a obtenção de uma quantidade de informações infinitamente superior do que a disponível em pertences pessoais – como carteiras e bolsas – ou, até mesmo, no domicílio de uma pessoa.

    Nas palavras do Ministro Ribeiro Dantas, relator do acórdão:
     

    De fato, com o avanço tecnológico, o aparelho celular deixou de ser apenas um instrumento de comunicação interpessoal. Hoje, é possível ter acesso a diversas funções, entre elas, a verificação de mensagens escritas ou audível, de correspondência eletrônica e de outros aplicativos que possibilitam a comunicação por meio de troca de dados de forma similar à telefonia convencional.


    Em suma, a decisão do STJ merece ser louvada, seja em razão de sua integral aderência ao Marco Civil da Internet, seja por consolidar a jurisprudência do tribunal no sentido de privilegiar a garantia da privacidade de usuários, mitigando os riscos de abusos por parte de autoridades responsáveis por investigações criminais.