Bloqueio do WhatsApp e direito à comunicação

Data do Julgamento:
27/10/2016

Data da Publicação:
04/11/2016

Tribunal ou Vara: Supremo Tribunal Federal - STF

Tipo de recurso/Ação: Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental

Número do Processo (Original/CNJ): 4000331-63.2016.1.00.0000

Nome do relator ou Juiz (caso sentença): Min. Edson Fachin

Câmara/Turma: -

Artigos do MCI mencionados:

Artigo 3º, I e V

Ementa:

"(...) Na sociedade moderna, a internet é, sem dúvida, o mais popular e abrangente dos meios de comunicação, objeto de diversos estudos acadêmicos pela importância que tem como instrumento democrático de acesso à informação e difusão de dados de toda a natureza.

Por outro lado, também é fonte de inquietação por parte dos teóricos quanto à possível necessidade de sua regulação, uma vez que, à primeira vista, cuidar-se-ia de um “território sem lei”.

No Brasil, contudo, já se procurou dar contornos legais à matéria. A Lei 12.965/2014 surgiu, exatamente, com o propósito de estabelecer "princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil”.

Em seu art. 3º, I, o citado diploma dispõe que o uso da internet no País tem como um dos princípios a “garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento, nos termos da Constituição Federal”. Além disso, há expressa preocupação com “a preservação da estabilidade, segurança e funcionalidade da rede, por meio de medidas técnicas compatíveis com os padrões internacionais e pelo estímulo ao uso de boas práticas” (art. 3º, V).

Ora, a suspensão do serviço do aplicativo WhatsApp, que permite a troca de mensagens instantâneas pela rede mundial de computadores, da forma abrangente como foi determinada, parece-me violar o preceito fundamental da liberdade de expressão aqui indicado, bem como a legislação de regência sobre o tema. Ademais, a extensão do bloqueio a todo o território nacional, afigura-se, quando menos, medida desproporcional ao motivo que lhe deu causa. (...)"

  • Claudio  de Lucena Neto
    Claudio de Lucena Neto em 23/06/2017

    Esta decisão do Supremo Tribunal Federal aborda essencialmente temas de jurisdição constitucional como o cabimento da ADPF, sua função, seu formato constitucional e outros pormenores jurídicos. Finalmente, faz uma alusão (bastante superficial) sobre a potencial violação que o bloqueio do aplicativo representa para a garantia de liberdade de expressão. Não anda fora do esperado em uma situação assim, em que uma decisão provisória precisou ser tomada claramente com um grande problema de alcance nacional e sob muita pressão para se resolver em muito pouco tempo.

    Sobre os mecanismos do MCI que envolvem a disciplina jurídica do ambiente digital e cuja constitucionalidade só vai ser propriamente discutida ao final do processo, a decisão não traz quase nada além de admitir a complexidade da matéria, remetendo esta análise para um momento posterior e ainda fazendo aquela velha referência genérica de que a Internet seria uma “terra sem lei” – uma lenda que sempre foi muito mal-contada, que sempre foi prejudicial à construção séria de soluções sólidas e adequadas às particularidades legais do meio eletrônico, mas que hoje é ainda particularmente mais danosa pelo caos desnecessário que pode provocar, mesmo porque, antes de mais nada, a premissa não é verdadeira.

    De qualquer maneira, trata-se de um pronunciamento que mesmo sendo provisório e superficial, é uma manifestação da Corte máxima do país. Como a questão de fundo segue aberta até o julgamento final da ADPF, vale a pena apontar uma questão de base que acredito que precisa surgir no curso do debate, de modo que se possa construir um quadro de interpretação com integridade e consistência para esse subsistema do MCI.

    E no curso do debate sobre a constitucionalidade deste tipo de bloqueio, simplesmente não se pode fugir daquilo que ainda não vi ser sequer contabilizado como ponto importante, embora seja absolutamente indispensável, elementar, que é a natureza do MCI.

    Governo, Congresso Nacional, indústria, academia e sociedade civil alardearam efusivamente durante todo o processo de construção da norma que se tratava de uma verdadeira Bill of Rights, uma Declaração de Direitos. A Lei foi e continua sendo saudada por todos esses agentes como um grande avanço, celebrando-se ainda hoje o reconhecimento internacional do pioneirismo do que foi então considerada, nas palavras do próprio Palácio do Planalto, uma “Constituição da Internet”.

    Ora, como já tive a oportunidade de escrever anteriormente, quem precisa de uma Declaração de Direitos é o cidadão. Não é o Estado. Uma Bill of Rights não existe para servir a Governo algum. Uma Carta Fundamental, uma Declaração ou qualquer outra iniciativa jurídico-política que tenha a estrutura semelhante à de uma Bill of Rights – e o ambiente de “contrato social” em torno do Marco Civil é, sim, o de uma Declaração de Direitos – serve precisamente para limitar a ação do Estado, proteger o cidadão enunciando suas garantias, e comprometendo o Poder Público com o respeito àqueles limites. Estado é controle. Sem limites, Estado é controle absoluto. Uma Declaração de Direitos representa os limites que a sociedade acorda em impor a este controle que o Estado é normalmente tentado a exercer, e ao mesmo tempo deve conter instrumentos eficientes que o cidadão possa invocar para garantir esses limites, caso o Estado os desrespeite.

    Apenas por isso o Marco Civil já seria bastante útil. Mas também por isso ele deve se concentrar fundamentalmente nas garantias à disposição do cidadão contra o controle do Estado – e esse é um contrato social que o Judiciário deve ter a sensibilidade de perceber, e a obrigação de observar, de respeitar e de ajudar a guardar. Quando se começa a aprofundar muito o tratamento das exceções, a esmiuçar muito as alternativas de desconsiderar as garantias, a investir muito nas hipóteses que o Estado pode levantar para justificar o avanço, a prioridade de seus interesses – que estão sempre sujeitos a se confundir com os interesses das pessoas temporariamente investidas das funções de chefia do governo – sobre os limites gerais estabelecidos, é um mau sinal.

    Aliás, é exatamente esse o motivo central das principais críticas a diversas das propostas de lei constantes do Relatório Final da CPI dos Crimes Cibernéticos: ao introduzirem a possibilidade de bloqueio de aplicativos, desfiguram o Marco Civil como Carta de Direitos na Internet. Volta a ser legislação para assegurar prerrogativas ao Estado - o que nunca esteve na mesa de negociação social, nem foi sequer objeto de debate! Sem falar também que, se a intenção do projeto é inserir a possibilidade de bloqueio, é porque o bloqueio nas circunstâncias em que vem ocorrendo, fundamentado no artigo 12, inciso III, não existe na redação atual do MCI. Não é uma interpretação polêmica, alternativa, um entendimento diferente, possível. É errada mesmo. Ilegal.

    Bloqueio de aplicativos no Brasil pode ser uma providência fundamentada em poder geral de cautela, legislação de combate a crime organizado, mas no MCI definitivamente, não. O Marco Civil é uma Carta de Direitos do Cidadão. Não é uma norma para assegurar nem regulamentar prerrogativas do Estado. É uma afirmação de garantias de liberdades do indivíduo. Claro que sim, deve conter – e contém – exceções genéricas de compatibilização com outros princípios de interesse público em caso de conflito, mas se não for levada em consideração essa concepção fundamental, toda operação hermenêutica sobre ele, seja através de decisão judicial, regulamentação ou iniciativa de emenda legislativa, vai levar essencialmente a uma distorção da finalidade, por não se compreender a essência dos motivos pelos quais ele existe.

    A natureza de uma norma com esta finalidade não pode ser desconsiderada pelo STF no momento de avaliar a constitucionalidade das ferramentas que ela contém.