Site fraudulento e responsabilidade civil

Data do Julgamento:
07/06/2016

Data da Publicação:
21/06/2016

Tribunal ou Vara: Tribunal de Justiça de São Paulo - TJSP

Tipo de recurso/Ação: Apelação Cível

Número do Processo (Original/CNJ): 1011391-95.2015.8.26.0005

Nome do relator ou Juiz (caso sentença): Des. Francisco Loureiro

Câmara/Turma: 1ª Câmara de Direito Privado

Artigos do MCI mencionados:

Artigo 5º V e VII e artigo 19

Ementa:

"AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C PEDIDO DE INDENIZAÇÃO - Empresa autora que postula a exclusão de site fraudulento criado em seu nome na Internet para venda de mercadorias, e a reparação dos danos morais sofridos - Sentença de extinção do feito sem resolução de mérito, sob o argumento de que o Google não tem legitimidade ad causam passiva - Desacerto - Réu, na condição de provedor de aplicações, é parte legítima para responder pelos pleitos decorrentes de conteúdo ilícito gerado por terceiros, nos termos do Marco Civil da Internet e da anterior jurisprudência consolidada - Possível o julgamento desde logo do mérito da lide pelo Tribunal, nos termos da legislação processual civil aplicável - Ação parcialmente procedente - Pleito cominatório formulado perdeu o objeto, diante da retirada espontânea do conteúdo ilícito da Internet por terceiro - Pedido de indenização por danos morais que, contudo, comporta acolhida - Possibilidade de responsabilização do requerido, na condição de provedor de aplicações, pelo conteúdo ilícito gerado por terceiros e disponibilizado na Internet, em virtude de sua inércia após o recebimento de notificação extrajudicial do lesado - Jurisprudência anterior do C. STJ já vinha se posicionando nesse sentido - Previsão do art. 19 da Lei n. 12.965/14, no sentido de que o provedor de aplicações só pode ser responsabilizado civilmente por ato de terceiro após o descumprimento de ordem judicial específica determinando a remoção de conteúdo ilícito, não deve ser interpretada literalmente, pena de ser considerada inconstitucional - Danos morais à autora decorrentes da ofensa à sua imagem, seu bom nome e seu conceito social - Pessoa jurídica passível de sofrer prejuízos de ordem extrapatrimonial - Inteligência da Súmula 227 do STJ - Devida a fixação da indenização em R$ 30.000,00, valor este que bem atende às funções ressarcitória e punitiva da reparação - Ação parcialmente procedente - Recurso parcialmente provido."

  • Paulo  Rená da Silva Santarém
    Paulo Rená da Silva Santarém em 13/07/2016

    No início do mês de junho de 2016, a 1ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo - TJSP proferiu um acórdão, no processo nº 1011391-95.2015.8.26.0005, condenando a Google Brasil Internet LTDA. "ao pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 100.000,00" em favor da Distribuidor de Cimento Marinho LTDA., em razão da ofensa à honra objetiva da empresa, decorrente da inércia do site de busca após ser notificado da necessidade de excluir da Internet um site falso de venda de materiais de construção. Os Desembargadores Claudio Godoy e Christine Santini acompanharam o voto do Relator, Desembargador Francisco Loureiro, para anular a sentença, que havia extinto a ação, por entender o Juiz que não caberia ao Google nem sequer a legitimidade para responder pelo dano alegado.

    Ao lado das questões próprias da responsabilidade civil, chama particular atenção o fundamento, adotado pelo TJSP, de afastar a aplicação literal do disposto no art. 19 do Marco Civil da Internet, segundo o qual os provedores de aplicações da Internet, como a ferramenta de busca do Google, somente respondem por atos de terceiro caso descumpram ordem judicial específica para remoção de conteúdo ilícito.

    No campo da responsabilidade civil, em relação à legitimidade processual, é possível considerar que não haveria ilegitimidade, pois a demanda foi ajuizada deliberadamente contra a Google, na condição específica de empresa cujo serviço de busca online permitia ao site falso ser encontrado por potenciais consumidores de materiais de construção. Em outras palavras, sem entrar muito na questão processual, pode-se entender que, se o Google foi apontado como intermediário, a questão de direito que se coloca é mesmo se o intermediário deve ou não responder por atos ilícitos de terceiros, que se utilizam do seu serviço para lesar consumidores e, no caso, uma outra empresa, que teve o seu nome utilizado no esquema fraudulento.

    O limite da responsabilidade dos intermediários foi uma das primeiríssimas questões que levantaram a exigência por um "Marco Civil Regulatório da Internet", na terminologia utilizada por Ronaldo Lemos no artigo seminal de 2007. À época, a discussão sobre os meio de persecução criminal tinha como centro a chamada Lei Azeredo, em que se propunha que as empresas de telecomunicações deveriam ter um cadastro total de seus clientes e, sob pena de responderem elas mesmas, denunciar à polícia qualquer atividade suspeita em suas redes. O argumento de Lemos sempre foi o de que ninguém colocaria um centavo de investimento em iniciativas tecnológicas no Brasil se o risco do empreendimento envolvesse ter que responder por todo e qualquer mal uso da tecnologia. Uma regulação desse setor da economia deveria ganhar uma baliza, uma moldura, uma marco legal que definisse a fronteira dessa responsabilidade.

    Muito tempo passou e a discussão ficou muito mais robusta, até que em 2014 fosse sancionada a Lei nº 12.965, que levou a questão para um patamar muito mais elevado: o dos direitos fundamentais. Quando se propõe que empresas sejam cães de guarda do Estado, vigiando a totalidade das comunicações de seus clientes, quem perde em liberdade de expressão e acesso à informação são as milhões de pessoas que usam a Internet para infinitas finalidades. Como garantia legal, a não punibilidade dos intermediários não apenas fomenta um ambiente econômico favorável ao florescimento de pequenas empresas que possas concorrer com as grandes; mas permite que as pessoas que usam a rede para objetivos lícitos não sejam a priori tratadas como potenciais criminosas que precisem ser monitoradas em massa a cada passo digital o tempo todo.

    A solução da controvérsia concreta, do site falso de materiais de construção, envolve conceitos jurídicos antigos como responsabilidade civil objetiva e subjetiva, risco e culpa, responsabilidade direta e indireta, conduta própria e fato de terceiro, entre outros. Mas a decisão envolve mais do que um ramo tradicional do direito, e pode definir um precedente que jogue por terra os mais de cinco anos durante os quais o Marco Civil esteve submetido a intenso debate, com toda a sociedade.

    É muito provável que a decisão seja submetida à revisão pelo Superior Tribunal de Justiça, por se tratar da não aplicação de um dispositivo legal bastante claro sobre a vedação dessa imposição de responsabilidade a um provedor cujo serviço online questionado não envolve diretamente o site apontado como falso; bem como ao reexame jurídico pelo Supremo Tribunal Federal, uma vez que o fundamento central do TJSP foi a inconstitucionalidade da regra prevista no Marco Civil. Vale lembrar que essa mesma questão da responsabilidade civil do provedor de serviços online teve reconhecida sua repercussão geral e aguarda decisão do STF desde 2012 (ARE 660861, Repercussão Geral tema nº 533).

    O acórdão renova a percepção de que a Internet ainda impõe desafios sério para uma aplicação minimamente coerente do direito. A lei positivada poderia servir como ponto de partida para que se construísse um diálogo íntegro entre o mundo jurídico e a tecnologia, levando direitos a sério sem ignorar a dinâmica incessante das inovações comunicacionais. Porém, pretender garantir um interesse particular de indenização a qualquer custo, pelo caminho mais fácil de punir a grande empresa intermediária em vez de que diretamente cometeu o ilícito, traz o sério risco de esvaziar o resultado de um singular processo legislativo, muito referenciado socialmente e celebrado em todo o mundo. Não só pela forma democrática, mas pelo conteúdo equilibrado e sofisticado, que assegura direitos tanto de modo justo, quando sem afrontar a lógica da Internet.

    O Google tem plenas condições de arcar com a indenização, de escolher se continua fazendo negócios no país ou não, e há muitos outros mecanismos de busca. Mas terraplanar o Marco Civil, com um alicerce constitucional tão frágil, seria lançar o Brasil de volta à estaca zero.

  • Bruno Ricardo Bioni
    Bruno Ricardo Bioni em 29/06/2016

    Introdução

    Em acórdão proferido em sede de recurso de apelação, a 1ª Câmara de Direito Privado Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo decidiu responsabilizar civilmente um provedor de aplicação de aplicação de internet (Google) pela “não retirada de site fraudulento do ar”, após o mesmo ter se recusado a fazê-lo em decorrência de notificação extrajudicial da parte lesada.

    Ao reformar a decisão do magistrado de primeira instância que havia reconhecido a ilegitimidade ad causam do mecanismo de busca, o órgão colegiado afastou a aplicação (“literal”) do artigo 19 da Lei 12.964/2014 (Marco Civil da Internet/MCI) sob a fundamentação de que condicionar a responsabilidade civil dos provedores de internet ao descumprimento de uma ordem judicial implicaria na inconstitucionalidade da norma. Colocar-se-ia em posição de supremacia o direito fundamental da liberdade de expressão frente aos demais (e.g., privacidade, intimidade, honra e imagem).

    A decisão pode ser comentada sob duas perspectivas: i) direito processual e; ii) direito material:

    Direito processual

    A pretensão da parte autora consistia em retirar um determinado website do ar, pois o nome domínio impugnado (www.materiais-marinho.com.br), registrado por um terceiro, coincidia com o seu “nome-fantasia”, o que levava terceiros e potenciais consumidores a erro.

    Sendo essa a situação jurídica firmada em juízo seria, realmente, o caso de se reconhecer a ilegitimidade ad causam do provedor de aplicação de internet, como bem fez o magistrado de primeiro grau.

    Quem deveria figurar no polo passivo seria o terceiro titular do nome de domínio. É ele quem detêm a sua propriedade, podendo ser, portanto, constrangido a retirá-lo do ar. Somente, dessa forma, a equação da relação processual seria solucionada, havendo pertinência subjetiva entre aqueles que a compõem. Ou seja, entre quem se sente lesado por um determinado website e aquele que registrou o seu respectivo nome de domínio.

    Como se descobre, no entanto, quem é o titular de um nome de domínio? Há uma plataforma chamada Whois que disponibiliza, dentre outras informações, quem é a pessoa física ou jurídica titular de um um determinado nome de domínio no “.br”. De posse dessa informação, bastaria, então, ingressar com uma “ação de obrigação de fazer” para que o titular do domínio retirasse-o do ar e, até mesmo, para que ele fosse cancelado e/ou transferido.

    Um motor de busca somente organiza e facilita o acesso às informações existentes na web, indexando-as. Ele poderia ser, no máximo, constrangido a não retornar como um dos seus resultados o website fraudulento, mas este permaneceria sendo acessível e, até mesmo, indexável por outras search engines. Daí porque faltaria, inclusive, interesse processual, já que a cogitada medida não tutelaria de maneira tão completa quanto possível a situação do requerente, qual seja, retirar do ar o sítio lesivo as suas atividades empresariais.

    Direito material

    Seja qual for o método de interpretação eleito para compreender a norma contida no artigo 19, caput, do MCI, jamais seria possível dela extrair a responsabilização de um provedor de aplicação de internet pela não remoção de conteúdo gerado por terceiro a não ser pelo descumprimento de uma ordem judicial para a sua retirada.

    Do ponto de vista histórico, bastaria uma simples análise dos longos e intensos debates travados ao longo do processo de construção colaborativa do MCI, muito bem condensados no relatório de aprovação do substitutivo do então Projeto de Lei 2.126/2011 do Deputado Alessandro Molon.

    Sob um olhar sistemático da Lei 12.965/2014, bastaria olhar para a liberdade de expressão como fundamento (artigo 2º, caput) e como princípio (artigo 3º, inciso I) do uso da Internet no Brasil, como condição (artigo 8º, caput) para o pleno exercício do direito de acesso à rede, e, por fim, como elemento fundante do regime jurídico da responsabilidade civil dos provedores de aplicação (artigo 19, caput) – as “cinco faces da liberdade de expressão” (Souza, 2015).

    Esse papel de destaque da liberdade de expressão é informador sobre a teleologia (outro possível método de interpretação) por trás da norma em questão: o princípio da inimputabilidade – um dos dez princípios para a governança e uso da Internet no Brasil do Comitê Gestor da Internet. O combate aos ilícitos na rede deve atingir seus responsáveis finais, isto é, os próprios usuários geradores de conteúdos ilícitos. Os intermediários, que servem como meio de acesso e geração para tais conteúdos, não devem ser, a princípio, corresponsabilizados, a fim de que haja um ecossistema legal que estimule e preserve tais pensamentos acomodados em tais plataformas.

    Com isso, cria-se um ambiente legal favorável à liberdade de expressão. Na medida em que a corresponsabilização dos intermediários é delimitada pelo descumprimento de uma ordem judicial: i) elege-se, como via de regra, o Poder Judiciário com a instância legítima para limitar a liberdade de pensamento; ii) ao assim fazê-lo, retira-se de tais atores privados a “pressão” de serem corresponsabilizados mediante simples notificação extrajudicial – dinâmica própria do chamado sistema notice and take down; iii) consequentemente, os provedores não têm tal “custo” em sua empreitada empresarial, o qual tenderia a ser mitigado com a simples e automática retirada do conteúdo apontado como ilícito, toda vez que eles fossem instados a fazê-lo por meio de notificação extrajudicial.

    Há, portanto, um sofisticado regime jurídico que visa compatibilizar liberdade de expressão com outros direitos fundamentais (privacidade, honra e imagem), levando-se em conta os efeitos perversos que as diferentes opções de regime jurídico de responsabilidade civil dos provedores poderiam ter nessa equação.

    Apostar em um regime jurídico que alargue o escopo da notificação extrajudicial para a corresponsabilização dos intermediários para além dos casos de vingança pornográfica (artigo 21 do MCI), onde o conflito entre a liberdade de expressão e os direitos da personalidade de outrem é mais facilmente solucionado, seria marginalizar o primeiro direito fundamental em detrimento de segundo e, aí sim, atrair-se-ia eventual vício de inconstitucionalidade.

    O leading case brasileiro sobre referida tensão entre tais direitos fundamentais teve como fio condutor a premissa de que “o homem, sujeito de outros direitos que se pretendem preservar – ou tanto se alega – também não pode praticar a limitação ou a extinção do direito à liberdade de expressão do outro quanto ao pensar sobre alguém” (STF ADI 4815/DF).

    Mutatis mutandis a liberdade de expressão sofreria a mesma perda (restrição) com a adoção do sistema do notice and take down. Todo o centro de imputação da corresponsabilização civil dos intermediários dependeria da própria parte supostamente lesada. Bastaria ela lançar mão de uma notificação extrajudicial para pressionar tais plataformas a restringirem o livre pensamento dos seus usuários e, em última análise, atribuir a elas o juízo de valor sobre a (i)licitude do conteúdo (uma espécie de privatização das contendas em torno da liberdade de expressão).

    Ao final, desenhar-se-ia um poderoso instrumento de controle de informação, posto em prática não pelo autor do pensamento, que muito se aproxima do conceito de censura e, por conseguinte, choca-se, frontalmente com os direitos constitucionais da liberdade de expressão e pensamento e do acesso à informação.

    Em suma, a decisão comentada merece uma reflexão crítica detida. Ela parece encampar, na verdade, um juízo político, moral e extremamente subjetivo da norma contida no artigo 19, caput, da Lei 12.965/2014, extrapolando uma interpretação objetiva e previsível por quaisquer que sejam os critérios hermenêuticos eleitos (histórico, sistemático, teleológico e literal).

    O legislador brasileiro fez uma escolham bem consciente a respeito do regime de responsabilidade civil dos provedores de internet, acomodando e compatibilizando a liberdade de expressão, privacidade e demais direitos da personalidade constitucionalizados. Trata-se de uma política legislativa que como tal só pode ser alterada pelo próprio Poder Legislativo.